“Cidadã de Segunda Classe” aborda racismo e gênero nas relações entre Nigéria e Inglaterra

“Cidadã de Segunda Classe”, da escritora nigeriana Buchi Emecheta, aborda temas contemporâneos a partir de uma perspectiva de gênero e raça.

Ir um dia ao Reino Unido era um sonho que Adah guardava consigo, mas sonhos depressa ganham corpo. Seu sonho vivia com ela, exatamente como uma Presença.

Buchi Emecheta é uma brilhante contadora de histórias. Nascida em Lagos, na Nigéria, é autora de diversos romances que abordam questões relacionadas ao colonialismo, à educação de mulheres e que muito contribuíram para levar ao mundo importantes elementos a respeito dos modos de subjetivação de mulheres na Nigéria.

Sobre o livro “Cidadã de Segunda Classe”

Cidadã de segunda classe conta a história de Adah. Desde pequena curiosa e pensadora, o maior sonho de Adah era conhecer o Reino Unido. E em um contexto e tempo em que a educação era majoritariamente destinada aos filhos homens, Adah se dobrou e desdobrou para fazer tudo que estivesse ao seu alcance para estudar. Entrou em uma escola e, depois, foi trabalhar na biblioteca do Consulado Americano em Lagos, o que só serviu para alimentar seu desejo de sair do país e seguir seu sonho. Os momentos do livro passados na Nigéria oferecem com riqueza de detalhes as diferenças culturais e de costumes entre igbos e iorubás, pluralizando e expandindo para além de uma imagem fixa da “mulher africana” ou da “mulher nigeriana” os processos históricos, sociais, políticos e subjetivos que produzem relações, casamentos, afetos, famílias e sujeitos na Nigéria. Este é, provavelmente, uma das maiores qualidades da escrita de Buchi Emecheta: a maestria com que complexifica relações, revela tensões e escapa de todo tipo de armadilha que coloque qualquer produção humana fechada em uma caixa ou em uma narrativa que a descreva ou perceba como se fosse alheia a processos coletivos e contingentes.

Capa de “Cidadã de segunda classe”, publicado no Brasil pela Editora Dublinense.

Ainda na Nigéria, Adah se casa com Francis, um rapaz tão jovem quanto ela — precisaram da assinatura em forma de digital da mãe de Francis para que o casamento fosse válido. Necessitava se casar porque, acabados os estudos, precisava de um teto para morar e, com os pais já falecidos, sabia que os parentes com quem morou antes de ir para a escola não a aceitariam de volta. Sendo uma jovem mulher estudada, Adah começa a trabalhar e seu dinheiro é o que sustenta ela, o marido e a família dele. Desfrutando de um status bastante frágil de sujeito, já que na Nigéria, à época, o lugar social ocupado pelas mulheres não era propriamente de pessoa, Adah era vista pelo marido e seus pais como fonte de renda e receptáculo dos filhos — homens — que dariam continuidade à linhagem familiar.

Titi e Vicky, os primeiros dois filhos, nasceram ainda na Nigéria, e só depois de Francis ter ido ao Reino Unido para estudar é que Adah conseguiu convencer os sogros de que deveria se juntar a ele. Seu sonho estava se realizando: ela estava, finalmente, indo para o Reino Unido. Mas como todo sonho, realizá-lo significava ao mesmo tempo alcançar um objetivo e deixar para trás laços e lembranças, que seriam necessariamente reconfigurados diante de sua partida.

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Boy era como Pa e Ma mesclados numa só pessoa, ali em pé. Ela também chorou, dessa vez não aos uivos, não para fazer um espetaculozinho vazio, mas lágrimas de verdadeiro pesar com a ideia de deixar para trás seu país natal. O país onde Pa estava enterrado e onde Ma jazia em silêncio eterno. Da vida que conhecera um dia, só restavam Boy e ela. Uma vida que nunca mais seria a mesma. As coisas estavam fadadas a mudar, para o bem ou para o mal, mas com certeza nunca mais seriam as mesmas.

“O vento frio que soprou em seu rosto quando ela saiu para o convés foi bruto e doloroso como um soco de um boxeador” — tão bruta quanto a recepção que o Reino Unido ofereceu a Adah. Ao chegar na terra desejada, Adah se deparou com desafios e dificuldades que não imaginara; pintou o país de destino como o melhor dos mundos sem saber que, lá, precisaria tanto quanto precisou na Nigéria lutar com unhas e dentes para alcançar seus objetivos.

É aqui que Buchi Emecheta torna o livro extremamente potente e interessante. Acompanhamos a trajetória de Adah na Nigéria em busca de seu grande sonho, mas ao acompanharmos o processo que transforma sonhos em realidade torna-se impossível fazer qualquer tipo de hierarquização que coloque o “lugar da mulher” na África num patamar abaixo do “lugar da mulher” na Europa. De uma maneira leve e frequentemente singela, a autora borra as fronteiras entre bom, ruim, civilizado, ultrapassado, correto, errado. As opressões e violências se transformam, não para dar lugar a uma experiência não violenta e livre, mas sim para que essas opressões e violências se apresentem e sejam sentidas de uma nova forma, muitas vezes mais difícil porque desconhecida. “Adah fora obrigada a percorrer todo o trajeto que separa Lagos de Londres para se dar conta dos fatos” e, da mesma maneira, também nós, leitoras/es, precisamos acompanhar os quilômetros percorridos por Adah para que se torne evidente que não há nada de propriamente civilizado ou melhor na vida que ela encontra quando chega ao seu destino final.

Na Inglaterra

A chegada de Adah ao Reino Unido a coloca cara a cara com faces do racismo que ela até então desconhecia. A separação geográfica da cidade que delimita bairros e moradias específicos para negros, o acesso precário a serviços de saúde e as inúmeras formas por meio das quais o Estado inglês incide (ou deixa de incidir) sobre as vidas dos negros e pobres mostram a Adah um Reino Unido bastante diferente daquele que ela esperava encontrar.

Você deve saber, querida jovem lady, que em Lagos você pode ser um milhão de vezes agente de publicidade para os americanos; pode estar ganhando um milhão de libras por dia; pode ter centenas de empregadas; pode estar vivendo como uma pessoa da elite, mas no dia em que você à Inglaterra vira cidadã de segunda classe. De modo que você não pode discriminar seu próprio povo, porque todos nós somos de segunda classe.

Seu casamento com Francis também deixa claro que estar na Europa não é suficiente para que ela seja respeitada enquanto mulher ou para que se torne um “sujeito pleno de direitos”, seja lá o que isso quer dizer. Os episódios cada vez mais frequentes de violência em sua casa se tornam mais dramáticos diante do fato de que ela encontra pouco ou nenhum suporte de políticas de Estado que a garantam qualquer tipo de proteção. E se nos primeiros capítulos o que salta aos olhos e surpreende são os modos como muitas vezes as mulheres nigerianas são tratadas como menos humanas, o estatuto de “cidadã de segunda classe” no contexto do casamento no Reino Unido não deixa dúvidas de que as práticas já naturalizadas e tidas como normais num ocidente que enche a boca para se dizer “humanitário”, “igual” e “justo”, sempre se colocando como contraponto mais desenvolvido e evoluído do que os povos por ele colonizados, são tão ou mais violentas do que aquelas que tão facilmente classificamos sob a insígnia da violência quando acontecem fora das fronteiras dos países ocidentais.

Adah não conseguia parar de pensar no que havia descoberto: que os brancos eram tão falíveis quanto qualquer pessoa. Havia brancos maus e brancos bons, assim como havia negros maus e negros bons! Por que, então, eles diziam que eram superiores?

Vivendo em um país novo, longe de seus costumes e tradições, Adah se sente cada vez mais deslocada. Tanto ela quanto Francis veem-se obrigados a reinventar-se neste novo mundo, mas é sobre ela esta mudança de ares acaba por ter mais efeito. Enquanto o marido parece somar às opressões de sua terra natal as novas opressões aprendidas no ocidente, vendo-se deslocado do lugar de superioridade que ocupava na Nigéria por ser homem diante da constatação de que, no Reino Unido, também ele é um cidadão de segunda classe, Adah encontra-se com novas formas e modos de vida que a fazem colocar em análise tudo que ela entendia antes como sendo o funcionamento normal das coisas. E na tensão entre o que ela conhece e gosta de seu país com aquilo que descobre desejar inventar para si, Adah vê-se imersa em anseios, pequenas felicidades e doses de decepção e tristeza.

Não mais que dois dias antes Francis declarara que possuía mais costelas que ela, porque Deus Jeová tomara uma das dele e a quebrara em sete pedacinhos para com elas fazer a caixa torácica de Adah. Essa era a razão pela qual em inglês ela era chamada de wo-man, porque ela fora construída a partir das costelas de um homem, um man, como ele próprio. Fazia algum sentido quando ele estava falando, já que woman era uma palavra que podia ser considerada uma palavra composta, wo e man. Qual seria a interpretação de Francis para a palavra que designava mulher em igbo ocidental, opoho, que não tinha a menor relevância para a palavra que designava o ser humano masculino: okei? Francis teria de inventar uma outra história para as duas palavras, porque a explicação da estrutura das costelas não se aplicava nem um pouco.

Dando espaço às tensões

Nigéria e Reino Unido são constantemente justapostos e colocados em tensão a partir das experiências da jovem Adah. As situações particulares e pessoais narradas a seu respeito vão tomando contorno político na medida em que remetem, constantemente, a importantes reflexões a respeito dos efeitos do colonialismo nas vidas e países colonizados. A violência colonial, nesse sentido, é revisitada a partir de outras violências que se dão em âmbitos mais locais e pessoais, reverberando a máxima de que o pessoal é sempre político.

Adah tentou se lembrar quem, na Grã-Bretanha, dissera a eles que em lagos as pessoas não precisavam de coisas de boa qualidade. Se lembrou de observar os biscoitos que a dra. Noble dava a Kimmy, seu cachorro preto. Tocara os biscoitos e, se não fosse o fato de haver gente olhando, teria provado um deles. Aqueles biscoitos não eram do mesmíssimo tipo vendido às pessoas na África? Aqueles, especificamente, não eram os mesmíssimos que seu Pa e seus tios costumavam levar para ela e seu irmão Boy do acampamento do exército, depois que a guerra acabou?

É no trecho que destaco abaixo que penso que se evidencia toda a habilidade da autora em tensionar e colocar em análise as categorizações estanques, violentas e discriminatórias que delimitam “bom” e “ruim” de uma perspectiva colonialista, sempre colando o “bom” ao colonizador e o “ruim” ao colonizado. O apagamento da dimensão colonialista do racismo e da violência de gênero apagaria, também, a percepção de como os processos coloniais estão imbricados nos processos de subjetivação mais simples, pequenos e aparentemente individuais:

Mesmo numa rua escura, uma rua tão escura quanto a Willes Road, em Kentish Town, dava para ouvir o canto dos pássaros. Numa manhã de segunda feira, quando a família ainda dormia, Adah reuniu seus apetrechos de higiene para ir tomar banho. Como não havia instalações para banho na casa onde eles viviam, Adah utilizava os banhos públicos da Prince of Wales Road várias vezes por semana. Foi durante uma dessas visitas, na segunda feira, que viu aquele pássaro cinzento, pequenino, solitário, mas satisfeito em sua solidão. Adah ficou imóvel do outro lado da rua olhando o pássaro cinzento cantar, cantar, pular de um parapeito para outro, feliz em sua liberdade solitária. Adah ficou intrigada com o bichinho. Imagine só, comover-se com uma coisa tão miúda quanto aquele pássaro cinzento! E isso quando menos de ano antes vira pássaros mais selvagens, espalhafatosos em suas cores, empolgados com seus cantos. Na época ela nunca se dava conta da existência dos pássaros nos quintais das casas de Lagos. Pensou consigo mesma: imagine se não existisse inverno, que é quando todo ser vivo parece desaparecer da face da terra; os pássaros estariam sempre à volta das pessoas e se tornariam uma coisa trivial, e ela não teria percebido nem admirado aquele que estava ali, nem ouvido seu canto fluido. Não seria disso que estavam precisando na África? Um longo, longo inverno, um período em que não houvesse o brilho do sol, nem pássaros, nem flores silvestres, nem calor? Quem sabe assim ficássemos um país de introvertidos, e quando a primavera chegasse estivéssemos preparados para apreciar o canto dos pássaros?

Em “Cidadã de segunda classe”, a vida que Adah vai tecendo e construindo para si envolve tensões nunca resolvidas (e nunca resolvíveis) entre diferentes modos de vida. A vida que ela constrói a duras penas nos convoca, também, a implodir qualquer tipo de percepção colonialista do mundo que categorize pessoas, práticas e sociedades ou que busque apagar as diferenças sob a falsa noção de que somos todos iguais. Adah aprende, aos poucos e duramente, a positivar as diferenças, a tirar da diferença aquilo que há de mais potente, a embaralhar os bons de todos os modos de vida que a constituem ao mesmo tempo em que busca sobreviver aos maus que a atravessam em diferentes locais, de diferentes formas.


Este texto faz parte do projeto Mulheres do Mundo – Uma escritora de cada país. O objetivo do projeto é ler um livro de uma escritora de cada país do mundo, sem pensar em quanto tempo isso vai demorar para se concretizar. É um desafio para conhecer a produção literária de mulheres, cada vez mais. Se você quiser se juntar a esse desafio e conhecer os outros textos do projeto, você pode acessar aqui.

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