A revolução inevitável: carta aberta de professora portuguesa sobre reforma na educação

[Publicado em Visão.pt]

Endereçada à Assembleia da República e ao ministro da Educação portugueses, a carta aberta de uma professora aposentada é um diagnóstico da educação tradicional. Arminda Silva, hoje com 73 anos, trabalhou por mais de 25 como docente do Ensino Fundamental I e, apesar de estar aposentada há 9 anos, continua acompanhando a realidade do ensino em seu país. Consciente de que a educação se faz muito anacrônica ao século XXI, Arminda escreveu uma carta substancial às autoridades educativas de Portugal, que, além de pontuar as irregularidades do ensino, também fornece medidas práticas para reformá-lo. Disponibilizada para site português Visão, confira abaixo a carta na íntegra:

“CARTA ABERTA SOBRE EDUCAÇÃO: A REVOLUÇÃO NECESSÁRIA ÀS ESCOLAS” por Arminda Silva

Neste tempo em que as novas tecnologias invadiram e tendem a dominar todas as áreas da nossa vida e em que crianças de dois anos mexem no celular da avó e escolhem a música que gostam, não podemos querer que as nossas crianças e jovens se sujeitem a escolas e sistemas de ensino absolutamente démodé.

Assim sendo, também não pode a Escola continuar a seguir os modelos do século XVI, com o risco de ela própria se “suicidar” por isso. A Escola ou faz uma revolução, ou morre.

Não faltará muito para que apareçam as primeiras escolas virtuais, sem necessidade de professores e de edifícios, com todos os inconvenientes e frieza que isso contém. Pode parecer um cenário improvável, mas é só uma questão de pensar mais além com os dados que temos.

Para que haja esperança no futuro é necessário formar pessoas capazes de pensar-refletir com imaginação, espírito criativo, capacidade crítica e comportamento ético.

Para tal é preciso mudar rapidamente de paradigma:

1. A ESCOLA NÃO É UM LUGAR PARA ENSINAR, MAS UM LUGAR PARA APRENDER.

O ensino centra-se no professor. A aprendizagem centra-se no aluno; ele é o construtor da sua própria aprendizagem. Isto implica que o professor imagine e crie metodologias de autoaprendizagem que levem o aluno a descobrir e a pensar, sendo que o papel do professor é acompanhar e orientar o aluno nesse caminho de descoberta.

Ex: no 1º ano o aluno pode aprender a ler sozinho, com um método-jogo de autoaprendizagem da leitura, com o qual atinge uma velocidade de leitura praticamente normal (nunca vai soletrar) contribuindo para o aumento da autoestima, porque é estimulante, e para um relacionamento harmonioso entre todos os alunos, porque eles precisam uns dos outros para jogar.

Na Matemática a manipulação do método Cuisenaire (um jogo versátil e divertido]) leva o aluno, sem esforço, desde as simples contagens às quatro operações básicas até à noção de potência e raiz quadrada; pode ainda ser utilizado para outros conceitos.

2. A PROGRESSÃO ESCOLAR NÃO DEVE FAZER-SE MAIS POR TRANSIÇÃO DE ANO, NEM BASEAR-SE SÓ EM TESTES DE AVALIAÇÃO.

A transição escolar deve acontecer por níveis, como nos jogos de celular, e não deve obedecer a nenhum calendário. O aluno transita assim que superou o seu nível, podendo haver alunos em diferentes níveis, ou o mesmo aluno estar em níveis diferentes nas diversas disciplinas.

Ex: uma criança pode estar no nível 9 em História e no 5 em Matemática.

Cada nível deve conter os módulos programáticos. A aprendizagem deve fazer-se por módulos e o aluno não deve passar de módulo enquanto o não manipular com muita segurança.

3. A ESCOLA PRECISA DE SER UM ESPAÇO ABERTO ONDE A INFORMAÇÃO E A COMUNICAÇÃO CIRCULE, O SABER NÃO PODE MAIS FICAR TRANCADO NAS SALAS DE AULA.

O edifício escolar deve ser constituído por núcleos e não por salas de aula.

Ex: Deve existir um núcleo para a Matemática, outro para as Ciências, outro para as Artes etc. A biblioteca pode ser o núcleo do Português .

Os núcleos devem conter materiais diversos tanto de consulta como de manipulação. Os alunos não precisam ter materiais ou livros próprios, nem devem haver livros únicos ou obrigatórios. A aprendizagem é uma experiência de descoberta e o aluno deve poder circular no núcleo e descobrir, ou ser levado a isso, o que lhe convém.

4. O ENSINO EXPOSITIVO CENTRADO NO PROFESSOR NÃO TEM MAIS CABIMENTO. A INDISCIPLINA NAS SALAS DE AULA HÁ MUITO QUE O VEM PROVANDO.

Como já se percebeu, o papel professor é orientar e facilitar a aprendizagem do aluno. É também um avaliador, mas também não é o único, devendo a avaliação constar de três momentos com diferentes ponderações: avaliação feita pelo professor, autoavaliação em que o aluno propõe e defende a sua nota e a avaliação feita pelos pares.

A avaliação é um momento precioso para desenvolver a capacidade crítica e o sentido de justiça, desde o 1º ano de escolaridade.

5. OS ALUNOS NÃO SÃO ARMAZÉNS PARA ENCHER DE CONHECIMENTOS.

O que é importante não é apenas o conhecimento , mas o que se faz com ele, ou seja: o aluno deve ser capaz no fim de cada módulo de saber utilizar e manipular o conhecimento adquirido em diferentes situações.

6. A ESCOLA DEVE FORMAR NÃO PARA O SABER-FAZER, MAS PARA O SABER-PENSAR.

O aluno deve aprender a fazer mas não de uma forma mimética, mas refletindo e compreendendo o que está a fazer.

7. UMA DISCIPLINA DE ÉTICA PRÁTICA DEVE FAZER PARTE DE TODOS CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS DESDE A INFANTIL ATÉ AO FIM DA UNIVERSIDADE.

Como disciplina prática, deve-se incluir acontecimentos ocorridos na própria escola e outras situações, que levem os alunos a refletir e a apresentar soluções.

A ética além de dever estar sempre presente no contexto do espaço escolar – entendendo-se por espaço escolar todos os intervenientes: alunos professores, empregados, sendo que é talvez necessário criar pequenos cursos de formação e tempos de reflexão nessa área, tanto para empregados como para professores.

Fui professora muitos anos e me dói ver o estado a que a Escola chegou. Por isso, aqui deixo um manifesto das minhas opiniões.

Como pessoa, acho que todos nós devemos e podemos contribuir com as nossas ideias para um mundo melhor. Como dizia o presidente dos EUA, “a questão não é o que o país pode fazer por você, mas sim o que você pode fazer pelo seu país”.

 
 
 
 
Fonte: http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2017-04-17-Carta-aberta-de-uma-professora-A-escola-ou-faz-uma-revolucao-ou-morre
Imagem de capa: Sebastião Salgado
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