Se Hollywood tem Paul Thomas Anderson, David Fincher e David Lynch, no Brasil o cinema autoral que melhor combina o experimental e o onírico é especialmente representado por grandes cineastas do Ceará, como Guto Parente, Karim Aïnouz e Rosemberg Cariry. Este último contempla sobretudo a vida agreste do sertão, o coronelismo, a violência e a mitologia do Nordeste, elementos que estabelecem sua matriz poética para Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio , lançado em 2002.
Restaurado digitalmente e exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2025, depois que o material danificado pela deterioração química foi meticulosamente recuperado, Lua Cambará volta às grandes telas em um ano de grande prestígio para o cinema brasileiro. Devido a uma fotografia que emprega o azul em enquadramentos poéticos, é possível, inclusive, traçar diálogos entre o filme de Cariry e a cinematografia de O Último Azul, também lançado em 2025 pelo recifense Gabriel Mascaro.
Adaptado de um conto que o autor cearense Ronaldo Correia de Brito escreveu aos 20 anos, Lua Cambará tem Dira Paes como protagonista, que dá nome ao filme com uma força e presença arrebatadoras: a filha negra e indesejada de um coronel que só queria herdeiros homens. Mais de duas décadas após seu lançamento, os temas caros à adaptação de Cariry seguem ainda mais relevantes e perturbadores: a negação da própria cor e do gênero a fim de reivindicar os direitos pela terra, pelo poder e pelo próprio nome.
Lua dá origem a um ciclo trágico ao assumir o papel de coronel, metamorfoseando-se naquilo que inscreveu o signo da maldição em sua vida desde a concepção. A história segue, portanto, o destino sentenciado pelo Coronel Cambará quando Lua é entregue aos seus cuidados ainda criança: “o que a gente não traz é o diabo que coloca no nosso caminho”.
Cariry constrói um universo onde o realismo agreste se funde com elementos oníricos: fantasmas, rituais de benzedeiras e a presença constante da morte. O coronelismo fornece matéria para a crítica do cineasta, mas aparece sobretudo como a representação metafísica de um mal que assombra gerações.
A capacidade de evocar o sobrenatural sobre um realismo brutal é a grande virtude do longa e, curiosamente, é também onde se visualizam alguns de seus pecados. Após um breve prólogo em que se tem uma visão superior da aridez do Cococi, a narrativa já segue para o retrato das violências extremas sofridas pelos escravos no século XIX. A cena do estupro em que Lua é concebida é uma das primeiras do longa. A crueza do olhar de Cariry é o seu mérito, mas também corre o risco de romper o misticismo que permeia o filme com excessos de materialidade que vêm a criar uma barreira entre o espectador e o sagrado que a narrativa também explora.
A montagem alterna abruptamente entre as manifestações do sobrenatural e a violência do coronelismo, criando um trânsito irregular entre o tempo mítico e o tempo histórico num espelhamento da própria sobrevivência no sertão.
Lua Cambará é um filme que assume os riscos de seus excessos ao considerá-los expressão fundamental da sua mitologia, em que a beleza e o mistério não têm o dever de redimir a brutalidade do passado. Assim como a protagonista se recusa a pertencer a qualquer ordem, ela rejeita ser definida como escrava, como negra, como mulher ou homem, a obra também se recusa a separar o encantamento da crueza do real.
Vale a pena ver a versão restaurada de Lua Cambará para confirmar que o cinema autoral brasileiro tem narrativas experimentais com identidade própria. Agora que vários títulos brasileiros recentes são aclamados em grandes premiações internacionais, é um momento oportuno para destacar que nossas produções regionais merecem tanta visibilidade quanto os grandes nomes da indústria global.
Minha nota para Lua Cambará no Letterboxd: 3 estrelas.
Lua Cambará: 2002
Direção e roteiro: Rosemberg Cariry
Duração: 1h28.

