Em uma das cenas de Surda, a personagem Ângela, interpretada por Miriam Garlo, está em uma ginecologista ao lado de seu marido para falar sobre sua gravidez. Por conta de sua surdez, a doutora fala um pouco mais lentamente, enquanto o ator Álvaro Cervantes traduz em língua de sinais o que a médica diz.
Em poucos segundos, a ginecologista já não olha mais para a grávida e se dirige diretamente para o homem que precisa corrigi-la: “pode falar diretamente com ela, ela sabe ler lábios”. Trata-se de um exemplo simples, mas que demonstra uma tendência geral à invisibilidade às pessoas surdas e com deficiência, ainda que não haja necessariamente uma intenção direta para tal.

O filme Surda, dirigido por Eva Libertad, assistido no Festival do Rio, em 2005, foi vencedor do Prêmio do Público na seção Panorama do Festival de Berlim 2025. Ele conta a história de Ângela, uma mulher surda que está prestes a se tornar mãe pela primeira vez. Diante de sua gravidez, ao lado de um marido que escuta, ela passa a enfrentar alguns dilemas. Primeiro, se sua filha escutaria ou não e, se caso escutasse, estaria adaptada a uma vida a seu lado.
Assim, ela precisa enfrentar não só os obstáculos extras ao lidar com um mundo pouco adaptado às suas necessidades e as tensões crescentes diante da chegada da filha. Ela, por um lado, se sente escanteada pelo marido, afinal, é sempre mais fácil o marido resolver tudo sozinho sem ela, por outro lado, ela fica sempre sobrecarregada pela série de barreiras na comunicação e na educação da criança.
Um dos pontos altos do longa-metragem é tratar a surdez a partir de diversos aspectos, como se ela fosse uma espécie de prisma a ser desenhado e redesenhado de modo que o espectador não a veja de uma de um lugar estável. Como se fosse um vitral a ser observado ao se caminhar pelo filme, a surdez não é um aspecto a ser nem romantizado, nem vitimizado, nem isolado, nem coletivizado, ele é e, por isso, precisa ser notado em suas pulverizações.

Até porque a surdez não é um “lugar” em que se possa “literalmente” ver, nem tampouco “ouvir”. A surdez é quase como uma placidez, uma transparência. Mas então, como retratar no cinema está matéria sonora em ausência de modo a se dar a “vê-la” em sua desmaterialidade?
Bom, podemos olhar como outros filmes fizeram nos últimos anos: “O som do silêncio” (2019) opta por ir do barulho ao silêncio absoluto à tentativa da adaptação e à construção de uma comunidade surda. Já “Coda”, colocou uma única pessoa que ouve dentro de uma comunidade surda para que se pudesse escutar os sons da surdez, ou seja, para que pudéssemos ouvir uma língua dentro da língua, como se houvesse uma infralíngua dentro das linguagens, uma coisa belíssima.
Em “Surda”, o que temos é a vontade de fazer a surdez ser tema, personagem, desenho, desejo, culpa, projeção. E esta mãe vai sentir culpa e raiva da filha por ela ouvir sim, mas também desejo de que a filha aprenda a se comunicar com ela, medo de que a filha não seja capaz de trocar consigo porque não domine a matéria- base da troca entre elas. Trata-se de um medo que talvez nem viesse a se confirmar, mas justificado, afinal, o mundo todos os dias confirma para essa mãe que nada foi feito para ela.
“Surda” desenha um mundo que, por ser tão excludente para pessoas com deficiência, redobra nos sujeitos um sentimento de culpa e impotência. E esse sentimento apaga questões coletivas e responsabilidades sociais, transformando-as em sentimentos meramente individuais. “Surda” transforma um problema que deveria ser do “modo como tratamos os surdos” em “problemas” da “Surda”. Por isso o filme é tão bom.

