“Haddad E Borghi: Cantam o Teatro, Livres em Cena” coloca dois grandes artistas no palco

Durante o Provocações, programa na TV Cultura, Antônio Abujamra se vira para Eduardo Sterblitch e pergunta: “o que é a vida?”. Um abismo se abre entre os dois, e o entrevistado, desesperado para não cair, responde: “a vida é ter memória”. Além de apresentador, Abujamra foi um dos maiores atores e diretores do teatro brasileiro. Ele faleceu alguns dias depois da entrevista. 

Se há inúmeros mistérios na frase dita por Sterblitch, o espetáculo “Haddad E Borghi: Cantam o Teatro, Livres em Cena”, em cartaz no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, em São Paulo, apresenta uma revelação. Isso porque a peça coloca Amir Haddad e Renato Borghi para respirar a memória do teatro brasileiro. Aos 88 anos, ligados por 70 anos de amizade e dedicação integral à arte, os dois artistas abriram – ao lado de Etty Fraser e Zé Celso – o terreiro onde o Teatro Oficina foi erguido. 

Foto: Ariel Santos

A partir desse encontro, o Brasil atravessou a ditadura militar, a Era Collor, o Plano Real, o Governo Lula, descambando no golpe contra Dilma Rousseff, o bolsonarismo e a pandemia. Em nenhum momento, Amir e Renato se afastaram dos palcos. Ao contrário, foi devido ao teatro que os dois não evaporaram em meio a enfervência da história. 

Então, não é gratuito que o discurso de Carmem Lúcia na leitura de seu voto para enfiar a sentença de Jair Bolsonaro na carcaça do Brasil agora faz parte da primeira cena. 

A grata tarefa de Eduardo Barata, o diretor e criador do espetáculo, foi de converter o oceano dos homenageados em algo possível de ser navegado pelo público. É por isso que o “livres em cena” aceso no título vai guiar a plateia em direção à terra firme… Débora Duboc, Duda Barata, Elcio Nogueira Seixas e Máximo Cutrim interagem com a dupla como “entrevistadores”, enquanto Amir e Renato contam sobre o encontro na Faculdade de Direito, em São Paulo; a estreia em Cândida, em 1957, e a separação um tempo depois. As palhaças Lenita Magalhães e Renata Maciel completam o bom elenco.

Haddad é mineiro. Estudou em São Paulo, mas foi no Rio de Janeiro que desaguou definitivamente. Borghi é carioca e se tornou paulistano de coração. Como o Atlântico e o Pacífico, as águas que só se encontram na América do Sul, os dois criaram memórias dramatúrgicas diferentes tendo o Brasil como estreito. 

Borghi arrancou “O Rei da Vela” da estante e balançou o Brasil com uma das encenações mais importantes da nossa história. Caetano e Gil assistiam à peça toda noite. E daquele espanto, se juntaram aos artistas que despendiam força e sonho para criar o RG do Brasil. Daí o teatro servir de baía para a Tropicália não é só significativo, como fator fundamental para o movimento. 

“Todo dia o silêncio do mundo repousa em mim”: Vitor Andrade e a poesia LGBT+ na descoberta da liberdade e do erotismo

A leveza da encenação de Barata unifica a memória dos casos contados em cena por meio da música. A direção musical e a música ao vivo do Trio Julio e Awane Borges, Maira Ranzeiro e Thiago Mota transformam-se em “ilhas” para o público se localizar. É um arquipélago formado por Dalva de Oliveira, Billie Holiday, Caetano Veloso entre sambas e marchinhas. 

Foto: Ariel Santos

O cenário Rostand Albuquerque e Barbara Quadros e a direção de movimento de Marina Salomon trazem da rua – o palco de Amir – o improviso e à espontaneidade que marcam a obra do diretor à frente do grupo “Tá na Rua”. Foi uma escolha cênica inteligente para movimentar os artistas em cena e gerar o clima circense do espetáculo, tão importante para aproximar o público da intimidade. As cenas em que Amir e Renato contam sobre a infância, não por acaso, parecem saídas de algum sonho… e o final – quando Borghi interpreta um trecho de A Tempestade e Amir o Manifesto do “Tá na rua” – é o tipo de coisa que deve fazer parte dos arquivos nacionais como um dínamo. 

Sim, porque “Haddad E Borghi: Cantam o Teatro, Livres em Cena” está além deste tempo. Especialmente a temporada neste lugar que foi casa de Antunes Filho, outro importantíssimo farol do Brasil, a paixão pelo teatro vista no tablado inverte os polos do próprio espetáculo: diante de nós, está sendo apresentado a possibilidade de um país que julga golpistas e desabrocha artistas. 

Mas se convencer que “a vida é ter memória” não traduz o que Haddad e Borghi significaram, significam e vão significar para o país. No caso desses grandes operários de teatro, e de todos os demais nascidos depois de assistirem uma peça, sempre haverá a inflexão: a vida é dar memória.

FICHA TÉCNICA

Criação e direção Eduardo Barata
Roteiro final Eduardo Barata e Elaine Moreira
Equipe criativa Débora Duboc, Elaine Moreira e Elcio Nogueira Seixas
Pesquisa Claudia Chaves
Elenco Amir Haddad, Renato Borghi, Débora Duboc, Duda Barata, Elcio Nogueira Seixas e Máximo Cutrim
Cantora lírica Ananda Gusmão
Palhaças Lenita Magalhães e Renata Maciel (sanfoneira)
Direção musical /Música ao vivo Trio Julio e Awane Borges, Maira Ranzeiro e Thiago Mota
Direção de movimento Marina Salomon
Cenário Rostand Albuquerque e Barbara Quadros
Fotos / Cenografia Coleção Marcelo Del Cima
Foto / Zé Celso Martinez Corrêa  Gabriel Rinaldi
Programação visual Claudio Attademo
Figurinos Rute Alves
Iluminação e Operação de luz Ricardo Vianna e Rodrigo Palmieri
Desenho de som e Operação de som Enrico Baraldi
Fotos Cristina Granato e Daniella Nanni
Programação visual / Vídeo-exposição Luciano Cian
Assessoria de Imprensa Barata Comunicação e Dobbs Scarpa
Direção de produção Elaine Moreira
Produção de base Bruno Luzes
Produção Barata Produções

Related posts

Entre o vinho e a tragédia: os ditirambos de Mattos Rodrigues para o fim do fim do mundo 

“Faça de tudo para não precisar da coragem”, Fábio Franco volta às memórias de Aracaju para (re)construir as dores de cada um de nós

Juntar os cacos para criar coesão: “Fragmentos de uma ausência”, de Luigi Ricciardi

3 comentários

laser marking machine 28 de setembro de 2025 - 16:25
Que notícia! Parece que o Brasil está se emocionando com peças que falam do passado. Será que a gente já não tem nada mais novo para ver? Mas ó, pelo menos a gente tem Haddad e Borghi contando histórias, não é? Cantam o Teatro, Livres em Cena soa como um show que vai te deixar com a memória (e talvez umas lágrimas) no olho. E acho que a gente pode sempre usar um pouco mais de memória na vida, especialmente quando o assunto é arte e espetáculos que fazem a gente refletir. Ah, e não se esqueça, a vida é dar memória, não só ter!laser marking machine
deltarune prophecy panels 28 de setembro de 2025 - 19:14
Ah, Haddad E Borghi: Cantam o Teatro, Livres em Cena! Uma homenagem que ressoa como um réquiem cênico para os tempos que viram o Brasil passar por tantas transformações. É como se o espetáculo dissesse: Lembrem-se, gente, que a memória não é só para museus, é o que nos impede de re-inventar a cena todo dia!. A mistura de samba com Shakespeare em cena parece um desafio divertido à própria história, não acha? Uma forma divertida de lembrar que, mesmo com tudo, o teatro brasileiro continua livre em cena, com seus próprios Manifestos e muito improviso. Uma leitura que merece ser ouvida, claro, especialmente se você já se sentiu desabrochado por uma boa peça!deltarune prophecy panels
watermark ai remover 29 de setembro de 2025 - 02:55
É claro que Haddad E Borghi: Cantam o Teatro, Livres em Cena é um espetáculo fundamental, mas e se a vida não é só ter memória, e sim esquecer as regras de gramática na hora? Aquela entrevista no Provocações foi um exemplo de como a falta de pontuação pode transformar uma pergunta em um abismo. Mas hey, pelo menos eles estão cantando o teatro, não estão mais na TV, que é o maior drama de todos os tempos. E o palco do Tá na Rua? Que ideia! Assim, qualquer um pode se sentir como um artista, desde que não tenha medo de ser um dínamo no meio da plateia.watermark ai remover
Add Comment