“É difícil descrever em palavras!”, declara um dos personagens deste romance surreal, inventivo, divertido e que, definitivamente, desafia a nossa percepção da realidade. Há uma aura de sonho, uma atmosfera onírica, ressaltada pelo ilógico, pelo insano, e talvez por isso muitos associem a escrita de Can Xue (残雪), pseudônimo de Deng Xiaohua (邓小华), a Franz Kafka, que também criou uma obra baseada em toda uma linha de raciocínio própria e inovadora. Quem sabe no futuro não usaremos o adjetivo “Xueniano” como usamos Kafkiano?
“Histórias de amor no novo milênio” (新千年里的爱情故) é o primeiro texto da autora chinesa, cujo nome há alguns anos aparece na lista de possíveis vencedores do Nobel de Literatura, a ser traduzido para o português do Brasil. Publicado pela editora Fósforo e com tradução direta do chinês por Verena Veludo, o romance descreve a vida de um grupo de mulheres em uma cidade industrial decadente. Elas estão em busca do amor, do prazer, da felicidade e da liberdade nesse mundo precário e hostil. E apesar do título, as histórias são, sim, de amor, mas não apenas sobre o amor romântico.
“Amar um homem é bom, mas nunca tão estável quanto a amizade. O amor é perigoso.” p. 148
Cuilan, a primeira personagem a aparecer na narrativa, é uma viúva independente e que valoriza sua vida sexual; Srta. Si (também conhecida por A Si) deixou o trabalho na fábrica de tecelagem para ser uma profissional do sexo em um bordel que funcionava em uma estância termal; Long Sixiang, cujo objetivo “era encontrar um homem que fosse sexualmente compatível”, junto de sua amiga Jin Zhu, seguiu os passos de A Si; Xiao Yuan era obcecada por relógios, viajava a trabalho para outras cidades e em uma de suas viagens se apaixona pelo dr. Liu. Ela era casada com Wei Bo, amante de Cuilan, ex-amante de A Si e também teve um caso rápido com Sixiang.
Essas e outras personagens femininas que aparecem ao longo do romance têm vários amantes, se envolvem com homens fora da lei, se apaixonam e abrem mão de seus amores. São mulheres insaciáveis, como uma das personagens chega a afirmar, mas profundamente sensíveis e não se curvam à paranoia e à opressão que rondam aquela cidade em ruínas.
A esse grupo, soma-se toda uma gama de personagens, os amantes, familiares, vizinhos, policiais, médicos, formando um verdadeiro mosaico, ou melhor, um caleidoscópio, visto o caráter mutável e dinâmico da narrativa, na qual as peças se rearranjam, formando padrões sempre novos.
Nesse quesito, é até possível traçar um paralelo com os romances clássicos chineses, também recheados de personagens que se entrelaçam. O Rei Macaco, inclusive, é citado; ele é um dos personagens do épico “Jornada para o Oeste”, escrito por Wu Cheng e publicado em 1819. Porém, essa é só a superfície.
Ao longo da narrativa, Can Xue explora a sensação de confusão desses personagens que constantemente se declaram confusos, perdidos e com a impressão de que não entendem o que os cerca, de que tudo é ou está esquisito:
“Cuilan estava meio dormindo, meio acordada; de repente sentiu que conhecia Long Sixiang havia muito tempo.” p.53
“Sei lá. Estou realmente confusa” p.72
“Agora você entendeu?, perguntou ela.
Mas não, Wei Bo não tinha entendido nada.
“Não, Sixiang, não entendi.”
“Perfeito!”, Sixiang bateu palmas e prosseguiu: “Não entender, na verdade, é entender tudo!” p.92
“Eu realmente não estou entendendo nada” p.124
“Achou que estivesse enlouquecendo.” p.333
“O dr. Liu a um só tempo parecia entender e não entender absolutamente nada.” p.335
Além de estarem quase sempre confusos, os personagens de Can Xue parecem buscar algo que muitas vezes eles sequer sabem o que é; no máximo, intuem. Muitos tentam retornar à terra natal, mas desconhecem o percurso, por exemplo. Tudo parece “um grande mistério dentro de outro mistério”.
Eles também não sabem como foram parar nos lugares, se perdem, se acham e, nós leitores, seguimos o mesmo caminho enquanto prédios e vilas inteiras aparecem e desaparecem, pessoas vêm e vão por passagens subterrâneas secretas, dissociam, flutuam e se metamorfoseiam.
“ Inexplicavelmente, o pachinko havia desaparecido e o local se tornara um buraco escuro.
“Ah, esse tipo de estabelecimento não existe até que você entre nele”, explicou o velho, que parecia rir outra vez.” p.201
O fantástico invade a narrativa com muitos elementos ligados à terra, ao solo, às raízes, à fauna e à flora.
“Foi então que, de repente, as mãos dela tocaram o que pareciam ser plantas úmidas na parede. Havia um grande número delas. Provavelmente, eram flores. Ah, a parede inteira estava coberta de rosas!” p.189
“Vez ou outra, durante a noite, ele levantava as mãos e agarrava o ar descontroladamente, tocando plantas peludas que pareciam crescer em uma parede esburacada.” p.223
Essa conexão com a terra e as profundezas ganha força, principalmente, quando a narrativa se passa na cidade de Chao, lar do dr. Liu e onde ele exerce uma mistura de medicina ocidental com fitoterapia chinesa.
“No mundo interior do dr. Liu, pessoas e plantas cresciam entrelaçadas. As plantas, com sua densa folhagem, podiam sufocar as pessoas, especialmente as raízes e sementes. Quando isso acontecia, as pessoas precisavam levantar voo. No entanto, como os seres humanos não sabem voar, eles ficam suspensos no ar, bem próximos ao chão, cobertos de sementes sentindo-se orgulhosos e amargurados, querendo a um só tempo voar mais alto e pousar no chão.” p.224
Muito da descrição das cenas em Chao me lembraram da estética da adaptação cinematográfica de um livro de ficção científica: “Aniquilação”, estrelado por Natalie Portman. É tudo muito colorido, surreal e estranhamente belo, assim como em muitas passagens de “Histórias de amor no novo milênio”.
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Caminhando por essa seara da intertextualidade, acabei estabelecendo algumas conexões com Bae Suah. Ao ler, principalmente, “Noite e dias desconhecidos”, da autora sul-coreana, me recordo de uma sensação de desconcerto, pois ela mexe com a nossa cabeça e nossos sentidos enquanto os personagens e suas existências se mesclam, assim como os acontecimentos, as descrições e as linhas do tempo, como em um sonho. Porém, Bae Suah descreve uma Seul sufocante, obscura, desconfortável, há toda uma melancolia e um peso que passam longe da narrativa de Can Xue, que, ao contrário, carrega muito humor e leveza dentro da estranheza.
“O ataque dos faisões em si não foi assustador, mas deixou o sr. You completamente sujo, afinal, a única maneira que as aves tinham para atacá-lo era com suas fezes. Pareciam estar o provocando, e não demorou muito para que ele se tornasse o “homem cagado”. Até seus olhos estavam cobertos de merda.
“Socorro!”, gritou, mas, sentindo-se particularmente ridículo, ficou quieto.” p.193
A escritora chinesa também elabora uma narrativa com diferentes planos, recheada de imprevisibilidade e de uma permanente sensação de irrealidade, já que sonho e realidade desconhecem fronteiras na sua escrita. Talvez a palavra alucinante seja mais acertada que desconcertante no caso da Can Xue, mesmo que ambas explorem os limites entre os estados de sono e vigília. Além, claro, do mágico que percorre toda a travessia narrativa em “Histórias de amor no novo milênio”.
Ainda com relação a essa atmosfera onírica, mas adentrando a conexão entre mundo e submundo, vivos e mortos, também presente em Can Xue (“Você não tem medo de viver com os mortos?”), a série The Leftovers me veio à mente ao longo da leitura. A série acompanha um grupo de pessoas tentando seguir suas vidas três anos após o desaparecimento inexplicável de 2% da população mundial. Há muitos elementos mágicos e sobrenaturais, mas destaco um episódio já na última temporada. Nele, um dos personagens adentra uma espécie de mundo dos sonhos, algo como um purgatório, um outro plano, e lá experimenta algo de dissociativo ao assumir a identidade de um assassino internacional. E o que mais me surpreendeu foi que ao término da série temos respostas que respondem e, ao mesmo tempo, não respondem nada, retomando a fala de Long Sixiang: Não entender, na verdade, é entender tudo!
Seja no filme de ficção científica, na melancólica Seul fora do tempo da sul-coreana Bae Suah ou no drama da HBO, nada é o suficiente ou chega perto de descrever o que foi ler Can Xue. Porém, em todas essas narrativas, assim como em “Histórias de amor no novo milênio”, as respostas ficam suspensas e, assumindo o risco de ser clichê, às vezes curtir a viagem é mais importante, e mais gostoso, que o destino final.
Sobre a autora:
Can Xue é pseudônimo de Deng Xiaohua, nascida em 1953, em Hunan, na China. Frequentou apenas o ensino fundamental e descobriu a literatura como autodidata. Foi trabalhadora fabril, alfaiate e, além de Histórias de amor no novo milênio (Fósforo, 2025), selecionado pelo LitHub como um dos melhores romances traduzidos para o inglês da década de 2010, escreveu outros romances, contos e ensaios.