Nos momentos finais de Apocalipse nos Trópicos, a câmera passeia lentamente pela devastação causada pelo 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Móveis históricos revirados, salas depredados, a vidraça do congresso estilhaçada e estátuas despedaçadas. A narração da diretora Petra Costa reflete sobre os significados dessa cena. Destaco uma frase: “Talvez num futuro apocalipse, essas ruínas revelam que esses prédios foram construídos não para impor a vontade da maioria, nem a vontade de Deus. Mas para proteger o que é vulnerável, da força bruta”.
Não se pode olhar para o prédio do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e enxergar somente sua estrutura física. A evidente lamentação dessa cena não é pela destruição material, mas sim pelo ataque ao que esses espaços representam, na visão do filme, essa “proteção ao que é vulnerável”. Fico com a pergunta: quando que o Congresso e o STF defenderam o que é vulnerável?

Sei que o “vulnerável” da frase se trata da democracia, um ideal que é o norte da discussão de Apocalipse nos Trópicos, dissertando a presença dos evangélicos na política brasileira. Mas quando se fala da história recente do Brasil, não dá para lidar com abstrações, nem só se preocupar com o governo Bolsonaro. É preciso falar sobre a prática real da democracia no país, que sempre foi falha, e olhar o bolsonarismo e o fundamentalismo evangélico não como “pontos fora da curva”, mas sim como a expressão máxima de características nacionais que sempre estiveram presentes na nação. Parafraseio aqui a crítica Andrea Ormond em sua discussão sobre as chamadas moneychanchadas: “O importante é termos em conta que um presente ruim é sempre fruto de um passado equivocado.”
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Para dar o devido crédito, Petra Costa até olha para o passado, mas é seletivo naquilo que ela deseja se aprofundar. Ser seletivo faz parte do processo cinematográfico, não dá para abraçar o mundo, afinal, mas não deixa de ser interessante notar o quê merece destaque e o que não merece. O apoio de Silas Malafaia à Lula nos seus dois primeiros mandatos, por exemplo, é mencionado brevemente, já o plano americano de usar a religião como ferramenta de combate ao comunismo nos anos 50 é bem mais detalhado, mesmo que fique relativamente deslocado no filme.
Apocalipse nos Trópicos é marcado por essa miopia, de se aproximar de questões mais desconfortáveis, e por isso mais pertinentes, mas tomar a decisão de não se aprofundar. É curioso que o documentário abra com a diretora falando de sua ignorância sobre o movimento Evangélico, posicionando a obra como uma investigação. Contudo, predomina certo tom professoral, de sempre estar explicando algo ao público.

A questão é, conforme o longa avança, há cada vez menos a ser explicado. A exploração da infiltração evangélica perde espaço e a obra se transforma em um Democracia em Vertigem 2, e se preocupa mais em recontar os eventos do governo Bolsonaro e da eleição de 2022. Há valor nisso. As imagens da pandemia e do descaso total do Governo Federal diante da calamidade nunca devem ser esquecidas.
Mas, para quem Petra está recontando essa história? Pode se fazer o argumento cínico de que se trata de um filme para gringo ver, uma espécie de “Introdução a Política e História Brasileira” para quem não a vive no dia a dia. É possível ser também mais caridoso, e apontar que se trata de um recado para o futuro, distante ou não, para que isso nunca mais se repita.
Retorno às imagens finais do filme, que se encerra com um lamento a um ideal de democracia que, provavelmente, jamais existiu no Brasil. De todas as imagens produzidas nos últimos anos — algumas presentes em Apocalipse nos Trópicos — Petra escolhe encerrar a obra com a menos comovente, mas também a mais respeitável, com um apelo mais generalista. Diante disso, fico com a posição cínica.

