Pecadores é um campo de batalha, mas também é uma conversa. Quase todos os seus elementos são dispostos de modo a gerar atrito, mas também partes indissociáveis um do outro. O sagrado e o profano vivem em eterno conflito, mas não podem existir sós. A nova obra de Ryan Coogler, ambientada no sul dos Estados Unidos nos anos 30, começa nos lembrando exatamente disso. Um pequeno prólogo conta de pessoas tão talentosas musicalmente, que são capazes de se conectar com o passado e o futuro, elevando as almas de quem os ouve, mas chamando a atenção de espíritos malignos no processo.
Essas relações complexas, de “bem” e “mal” andando de mãos dadas, se estendem em toda narrativa. Sammie (Miles Caton) é filho de pastor, mas sua alma pertence ao blues, visto como o ritmo do demônio pelo seu pai. Os irmãos Fumaça e Fuligem (ambos Michael B. Jordan) têm personalidades distintas: um é sério, focado em negócios, o outro se permite ser mais leve, brincalhão. É fácil querer tratá-los como simples mocinhos, mas o roteiro pontua a dureza dos gêmeos. Sim, eles se preocupam em oferecer o melhor possível para aqueles ao seu redor, mas não hesitam em fazer uso da violência quando necessário.
Mas quero focar no conflito principal, que se dá por meio do vampiro Remmick (Jack O’Connell). O personagem é irlandês, colocando seus atos contra os outros personagens — quase todos negros — sobre outra luz, mais complicada do que um conflito entre opressores e oprimidos, por conta do histórico de colonização encarado pela Irlanda, levantado com frequência pelo antagonista.
Assim, é uma briga entre oprimidos que buscam maneiras de se libertar. Coogler já tratou desse tema em filmes prévios, e Pecadores faz par com a franquia Pantera Negra, em que os vilões, similarmente, são figuras que sofreram nas mãos dos colonizadores, e que em seus atos de liberação acabam por replicar as crueldades dos opressores — pelo menos na moral do universo Marvel.
Para Remmick, a liberdade está no vampirismo. Cada pessoa transformada se torna parte de uma rede, memórias e saberes compartilhados entre todos. Para Sammie, a liberdade está em um lugar onde ele, e os seus, possam ser eles mesmos, em conjunto, mas ainda assim, únicos.
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Coogler ilustra essa dualidade por meio de um elemento que permeia toda a narrativa de Pecadores: a música. A primeira apresentação de Sammie no clube de blues criado por Fumaça e Fuligem acontece por meio de um plano-sequência, que une passado, presente e futuro, e também os presentes. A câmera passeia por pessoas que se divertem, dançam, comem e bebem, todos em sintonia com a música, mas cada um à sua maneira. Em tempos onde o plano-sequência é tão fetichizado, é bom ver um bom uso da técnica. Vale notar que a cena se encerra com a câmera se voltando para os céus. Liberdade.
Remmick também tem seu momento de cantar, cercado de outros vampiros, em comunidade, mas a sua coletividade é completamente diferente. Seus parceiros dançam, com sorrisos no rosto, mas não entre si, dançam somente ao redor dele. A cena se conclui com os seres se abraçando, mas o rosto de Remmick fica em destaque. Todos podem ser livres, é claro, se for da maneira que ele entende.
Pecadores é vibrante por não fugir das contradições de seus personagens e das situações que desenvolve, o que gera imagens fascinantes, como as danças citadas acima e um batismo profano realizado por Remmick, só para citar algumas.
Além disso, é um filme que não foge da sua sensualidade. Em tempos onde obras como Twisters, entre outras, possui uma relação central completamente anódina, onde todo mundo é bonito, mas ninguém sente tesão, é reconfortante ver uma produção mostrando o óbvio: ver gente bonita e gostosa se pegando é muito legal.
Pecadores é o típico filmão americano de outrora, e não digo isso como demérito, mesmo que seu aspecto populista acaba jogando um pouco contra — o alívio cômico do personagem de Delroy Lindo acaba quebrando a tensão de alguns momentos — mas sim com certo saudosismo e admiração. Não esperava um filme desse porte falar sobre griôs de modo tão direto, e embala sua complexidade com uma narrativa francamente divertida, sensual e emocionante, de um jeito que nos lembra por que o cinema é essa arte que tanto nos encanta.
Revisado por Letícia Magalhães