A Mais Preciosa das Cargas (2024): animação retrata uma família inesperada diante dos horrores da guerra

Michel Hazanavicius ganhou notoriedade e um Oscar de Melhor Diretor com O Artista (2011), raro exemplo de filme mudo feito em pleno século XXI. Foi com essa conquista que ele se tornou, ao menos para mim, um dos realizadores mais interessantes de se acompanhar. Se antes do filme oscarizado havia feito duas paródias sobre o Agente 117 – interpretado pelo protagonista de O Artista, Jean Dujardin –, depois o que se seguiu foram um filme de guerra, uma cinebiografia ímpar de Godard e uma fantasia com um queridinho do público brasileiro, Omar Sy. Hazanavicius em geral roteiriza e dirige seus próprios projetos, e é assim com dupla função que ele chega no mundo da animação para adultos com A Mais Preciosa das Cargas (2024).

Um lenhador e sua esposa vivem isolados do mundo numa cabana na floresta. Não tiveram filhos, não transmitiram a nenhuma criatura o legado de sua miséria. Ele está resignado com a ausência de herdeiros, mas ela queria muito ter nos braços uma criança. Todos os dias, ela reza na sepultura do filho morto. Reza também para os deuses do trem que cruza a floresta, para que joguem algo que a livre da pobreza. Um dia, o trem passa e um choro de criança ecoa pela imensidão de neve. Ela encontra assim a filha com que sempre sonhou.

O lenhador não gosta nada da novidade. Se ela veio do trem, ele conclui, é porque é uma dos Sem Coração. Se quiser criar a menina sozinha, a esposa pode, desde que não o incomode. Assim a esposa faz um arranjo com um morador mais próximo em troca de leite de cabra para alimentar a inocente criança. Com o tempo, o lenhador se afeiçoa à menina e descobre por experiência própria que os Sem Coração têm algo pulsante dentro do peito.

O que está acontecendo, nos contam no início, é uma Guerra Mundial. Logo nos damos conta de que é a Segunda das guerras mundiais, e os “Sem Coração” só podem ser os judeus, transportados como gado por trens até campos de concentração e extermínio, ou como o narrador coloca: “Em vagões selados, a humanidade agonizava”. O antissemitismo impera mesmo entre os lenhadores ignorantes, que pedem pela morte de todos os Sem Coração por motivos religiosos e de limpeza étnica.

Leia também: Romance de Jacques Fux, “Herança” retrata os traumas do Holocausto em três gerações

O homem que acolhe a mulher do lenhador e a menina tem o rosto desfigurado por causa da guerra – outra guerra, mas ele afirma que as guerras são todas iguais. A verdade é que após a Primeira Guerra Mundial, um conflito sem precedentes, viu-se um número recorde de desfigurados tendo de voltar à vida de civil enfrentando olhares de medo ou pena. O campo da cirurgia plástica evoluiu muito após o conflito e muitas foram as cobaias para as novas intervenções e invenções, que incluíam máscaras e enxertos.

A trilha sonora fica por conta do virtuoso Alexandre Desplat, ganhador de dois Oscars e responsável por mais de 200 trilhas sonoras no cinema principalmente, mas também na televisão. Filho de uma mãe grega e um pai francês, este colaborador constante de Wes Anderson é um dos grandes nomes da música no cinema, podendo figurar ao lado de compositores como Maurice Jarre, Henry Mancini e Bernard Herrmann.

A Mais Preciosa das Cargas é o filme de despedida do grande intérprete francês Jean-Louis Trintignant, falecido em 2022, que dá voz ao narrador. Sua longa carreira de mais de 140 títulos em cinema e televisão acaba justamente com as palavras, muito sábias e inspiradas: “o amor que faz a vida continuar. O resto é silêncio”.

O storyboard para a animação foi feito de uma maneira inusitada, porém não muito diferente da praticada no passado: a partir da filmagem de 15 atores de carne e osso, num teatro sem figurinos ou objetos de cena. Tal técnica era muito usada nas animações por rotoscopia, como as feitas na Era de Ouro dos estúdios Disney.

São muitas as cenas noturnas, escuras e iluminadas por um único feixe de luz, seja vindo da lareira dentro da cabana ou, fora dela, do farol do trem. Por isso podemos dizer que, em boa parte do filme, são sombras e figuras à meia-luz que contam a história. Essa com certeza é uma escolha estilística: sombras para tratar de um tema sombrio. Outra escolha é não dar nome aos personagens: poderiam ser quaisquer pessoas. Poderíamos ser nós.

Existem hoje no IMDb, site de referência para os cinéfilos, 1357 filmes catalogados com a TAG “Holocausto”, e cada um deles é um tapa na cara dos negacionistas, que são mencionados ao final de A Mais Preciosa das Cargas. É um filme que apresenta algo de novo sobre o tema? Não. Mas a cada dia percebemos que precisamos continuar falando sobre Holocausto sem nos silenciar com relação a outros extermínios, que aconteceram no passado e acontecem no presente. O cinema também é ferramenta para evitar o esquecimento. 

Revisado: Gabriel Batista

A Mais Preciosa das Cargas estreia em 17 de abril. Confira o trailer:

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