“Até que a Música Pare” lida com o luto com respeito à diversidade religiosa

A sinopse de “Até que a Música Pare” pode provocar risadas: trata-se da história de uma idosa que entra em contato com a filosofia budista e passa a acreditar que seu filho reencarnou numa tartaruga. No entanto, não se engane: este é um filme sério, que lida com o assunto com respeito e sutileza.

Chiara (Cibele Tedesco) está com o ninho vazio. Seu filho Vancarlo (Jonas Piccoli) vendeu a moto e foi-se embora. Sua filha Bea (Tamara Zanotto Padilha) já morava fora e era incapaz de suprir a saudade mesmo levando a neta para passar um tempo com a avó. Houve ainda um terceiro filho, Marco, já falecido. O marido, Alfredo (Hugo Lorensatti), faz entregas de carro pela região e para sentir-se menos só arranjou uma pequena tartaruga de estimação chamada Filomena.

Há uma sequência de duração considerável envolvendo o almoço que a amiga Albertina (Cleri Pelizza) oferece para a filha Gabi (Elisa Volpatto) e o namorado Luca (Nicolas Vaporidis), um italiano budista. Surgem perguntas sobre a filosofia budista, fruto de curiosidade das senhorinhas. Uma delas fica particularmente abalada com a crença de que uma alma que habitou um corpo humano pode se reencarnar como um animal.

Até que um dia, cansada da solidão, Chiara resolve acompanhar Alfredo e Filomena na estrada. Convencida de que a tartaruga pode abrigar a alma que já foi de uma pessoa – talvez até a do filho Marco – a senhora se afeiçoa ao animal. Ela também começa a fazer a contabilidade dos negócios do marido e acaba descobrindo que Marco vendeu o mercadinho da família por causa de falcatruas levadas a cabo por Alfredo.

Vemos a contextualização da ação em muitos momentos: trata-se de uma história passada nos nossos dias. O casal se vê às voltas com perseguições políticas noticiadas pela TV, aumento da violência nas escolas e disseminação de fake news, que felizmente a neta sabe identificar para só mandar links verdadeiros sobre budismo para a avó. É uma época de ódio e desentendimento, espelhada no desentendimento do casal a partir das descobertas de Chiara.

A religião é parte importante da vida de Chiara e Alfredo. Ela reza junto a um oratório cuja presença é determinada por um rodízio entre os vizinhos. Quando Chiara fala de Budismo e da possibilidade de reencarnação num animal, Alfredo fica louco de raiva e a acusa de não respeitar o primeiro mandamento. A filha Bea acredita que a religião está cegando o bom juízo dos pais – mas ela pode ser, sem desejo de imbuir duplo sentido, a salvação.

Logo no início, uma cartela nos informa: “parte dos diálogos deste filme são em talian, língua brasileira reconhecida oficialmente em 2014 e formada do contato do português com idiomas dos imigrantes do norte da Itália, que chegaram ao Brasil no século 19”. O Talian foi uma das três primeiras línguas reconhecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, junto ao Asurini do Trocará e o Guarani Mbya. Quando pensamos em línguas reconhecidas em território brasileiro distintas do português logo nos vêm à mente as línguas indígenas, porém estima-se que sejam faladas pelo menos 250 línguas em território brasileiro.

As casas e paisagens lembram-me de “Porto Príncipe”, outra produção ambientada na região Sul. São ambos filmes sobre encontro entre culturas: Brasil e Haiti em “Porto Príncipe” e Catolicismo e Budismo em “Até que a Música Pare”. Em ambos é uma mulher de olhos claros a principal afetada por este choque, tendo sua visão de mundo alargada. E lembremo-nos aqui de uma frase atribuída a Albert Einstein: “a mente que se abre a uma nova ideia jamais retorna ao seu tamanho original”.

Cristiane Oliveira assina direção, produção e roteiro, tendo neste último colaboração para os diálogos de Hugo Lorensatti e outras duas pessoas. Sobre esta colaboração no roteiro, Cristiane, que tem aqui seu terceiro longa, declara:

Conflitos familiares contemporâneos que o filme aborda se radicalizaram ao nosso redor enquanto fazíamos o filme, o que tornou toda ficção mais palpável. Aprendi muito com os atores. Hugo, por exemplo, atua em teatro desde os anos 1980 num grupo foi fundamental para despertar a consciência da população local sobre a ditadura.”

Elaborar o luto nunca é tarefa fácil. Mas às vezes só precisamos de uma tartaruga.

Assista ao trailer aqui:

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