Hugo de Carvalho: goiano que influenciou Guimarães Rosa e Mário de Andrade tem obra resgatada

“Entretanto, continuava a servir a fazenda com o mesmo zelo de sempre. O amor àquela vida a que se acostumara desde os cueiros do balaio, o desapego nativo a questões de dinheiro, compensavam-no largamente das vexações sofridas. Continuava ali servindo, como tinham servido seu pai e avô, como também viriam a servir filhos e netos, desinteressado no ganho, defendendo com aferro os negócios da fazenda, na prosperidade dos quais punha mais cuidados que nos próprios arranjos…”

Hugo de Carvalho Ramos

 “Gente da Gleba” (Tropas e Boiadas), vol. I, p. 233

Uma estranheza perdida em algum lugar entre o anti-herói romanesco e os habitantes de “Goyaz”, entre o saci e o Werther de Goethe permeia a obra de Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921), uma das penas mais originais e desconhecidas da literatura brasileira. O escritor goiano sorveu ao máximo as referências da literatura internacional sem deixar de contemplar o cerne do Brasil e sua realidade agrária através de um viés psicológico refinado, evitando o clichê do regionalismo naturalista.

As Obras reunidas de Hugo de Carvalho Ramos resgatam a totalidade dos textos que sobreviveram aos ímpetos (auto)destrutivos de Hugo, revelando um escritor deprimido, supostamente homossexual, que costumava queimar alguns de seus manuscritos. Todas as facetas de Hugo foram novamente reunidas pela primeira vez desde as edições das Obras completas de Hugo de Carvalho Ramos publicadas em 1950 pela Editora Panorama e compiladas pelo irmão Victor de Carvalho Ramos.

A nova edição foi organizada em dois volumes: o primeiro contém Tropas e boiadas (1917), sua obra mais conhecida, a única publicada em vida. Trata-se de contos que evocam aventuras e causos de um mundo agrícola bem anterior ao agronegócio brasileiro atual. Com recursos da oralidade, os contos de Hugo remetem à arte de narrar, em histórias que se encaixam, criando retratos e paisagens que não caem no chavão regionalista da “cor local” ou de personagens planos. Para além da originalidade dos temas abordados, esses contos-paisagens recriam o léxico dos boiadeiros e trazem a estética do grotesco. De sua primeira publicação, Tropas e boiadas logo chamou a atenção de grandes escritores brasileiros, como Monteiro Lobato (que viria a publicá-lo), Mário de Andrade e Guimarães Rosa.

Desde a infância, Hugo devorava tudo o que lhe caía nas mãos: referências clássicas da Antiguidade, grandes e pequenos nomes do romance europeu, além de lendas e mitos nórdicos e celtas bem como asiáticos. Unindo diversos mundos, mas privilegiando a realidade ora arcádica, ora brutal de seu cerrado natal, e recorrendo a um léxico ao mesmo tempo “caipira” e altamente erudito, Hugo soube representar com talento extraordinário as questões mais profundas e obscuras da alma humana a ponto de desafiar classificações. Nesse sentido, a obra de Hugo de Carvalho Ramos ultrapassa certo limbo do chamado pré-modernismo. Os múltiplos focos narrativos e a riqueza de detalhes tornam os textos ora algo semelhante a pinturas escritas, ora a ensaios.

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Neste primeiro volume também está reunida a poesia de Hugo de Carvalho Ramos, na qual se percebe sua verve religiosa, quase mística, para além do catolicismo tradicional brasileiro. Em seus versos, Hugo recorre a um lirismo embebido de romantismo, já um pouco ultrapassado em sua época, e de elementos mais inovadores do simbolismo. Ao mesmo tempo, porém, é possível notar um escritor atento às vanguardas europeias que começavam a despontar no início do século XX.

O primeiro volume é intercalado pelos textos críticos originais do cineasta e pesquisador Lázaro Ribeiro, que retraça elementos biográficos do autor e os traz à luz;do poeta Ricardo Domeneck, em uma reflexão da obra poética do autor no contexto da poesia contemporânea; e da pesquisadora especialista na obra de Hugo, Albertina Vicentini, que estabelece paralelos inéditos entre o contexto sócio literário desses escritos com a atualidade.

Além das conhecidas Tropas e boiadas, outros escritos de Hugo, há muito relegados ao esquecimento, não gozaram da mesma fama, injustamente. Essa produção negligenciada até hoje compõe o volume II.  Entre esses textos, estão os Escritos esparsos, antes batizados de Plangências pelo irmão de Hugo, que desafiam definições pré-estabelecidas de gêneros literários. Este tema é tratado com perspicácia por Antón Corbacho em um texto elaborado especialmente para esta edição, que aborda as tais Plangências sob o ponto de vista não apenas literário, mas também político, das edições anteriores. 

Se os textos dos Escritos esparsos revelam uma verve espiritual, histórico-literária e intimista do autor, Hugo demonstra em seus artigos sua habilidade ensaística ao discorrer sobre temas como os meios de produção agrícola e o futebol, jogo que encara como algo não definidor do desporto tradicionalmente brasileiro.  um texto que engloba a obra de Hugo como um todo, trazendo especial atenção aos artigos e à correspondência de Hugo. Em seguida, o leitor poderá ter contato com sua correspondência, carregada de dilemas existenciais (não aceitação da própria orientação sexual?), demonstrando uma personalidade tão hiper-sensível e frágil quanto artística, unindo o que a tradição europeia e o mundo caipira têm de mais profundo. Por fim, um texto inédito de Rogério Santana encerra o volume, trazendo elucidações importantes da obra de Hugo como um todo, com enfoque especial na produção jornalística e na correspondência do autor, aspectos menos estudados pela crítica.

Ficha Técnica

Título: Hugo de Carvalho Ramos – Obras Reunidas (2 vols.)

Autor: Hugo de Carvalho Ramos

Textos: Lázaro Ribeiro, Ricardo Domeneck, Albertina Vicentini, Antón Corbacho e Rogério Santana.

Projeto gráfico: Estúdio Margem

Formato: 13,4 x 19,6 cm

Número de páginas: 323 (Vol. I) e 399 (Vol. II)

ISBN: 978-65-85960-11-3 (Vol. I) e 978-65-85960-13-7 (Vol. II)

Preço: R$ 98,00 (Vol. I); R$ 107,00 (Vol. II) e R$ 215,00 (Box)

Data de livraria: 28/06/2024

Editora: Ercolano

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