Em seu livro “A Regra do Jogo”, o jornalista Cláudio Abramo afirma que, mais do que ler os grandes teóricos de comunicação, o estudante de jornalismo deve ler Shakespeare, já que, segundo ele, nas obras do bardo “aprende-se toda a psicologia humana”. Se esse conselho foi tomado por aqueles que leram o livro, fica no ar, mas essa ideia já fazia parte do cinema a muito tempo, com uma variedade de cineastas buscando as obras do autor inglês para realizarem seus trabalhos, sejam eles adaptações diretas dos textos ou como material para novas roupagens e interpretações.
A lista de diretores que realizou tal coisa vai de Akira Kurosawa, cujos longas Ran e Trono Manchado de Sangue são adaptações de “Rei Lear” e “Macbeth”, respectivamente, passando por Abel Ferrara e Baz Luhrmann, ambos realizando “Romeu e Julieta” à sua maneira, em Inimigos Pelo Destino e em Romeu + Julieta, e chegando até mesmo em Joss Whedon, que dirigiu uma adaptação de “Muito Barulho por Nada”.
Outro nome ilustre dessa lista é o de Eduardo Coutinho, embora a obra em si não seja tão conhecida, não sem motivo, afinal, Coutinho conquistou seu espaço pelos documentários, e seu trabalho na direção de longas ficcionais acaba sendo esquecido, sem contar o péssimo estado de preservação das mesmas, que só são encontradas em arquivos de baixa qualidade pela internet. A segunda e última dessas obras do documentarista, Faustão, se inspira na peça “Henrique IV” de Shakespeare, transportando a ação da Inglaterra medieval para o árido Nordeste coronelista, nos últimos dias do cangaço, aqui representado pela figura de Faustão, papel de Eliezer Gomes.
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O personagem se envolve em uma disputa entre famílias após ajudar Henrique Pereira (Jorge Gomes), filho de um coronel que foi baleado por membros de uma família rival, os Araújo, após uma emboscada. Apesar de salvar o jovem, a relação entre os dois é antagônica: o pai de Henrique prometeu matar Faustão, mas sentindo uma oportunidade, o cangaceiro acolhe o herdeiro, na esperança de conseguir uma recompensa pelo salvamento, mas logo passa a se envolver diretamente no conflito. A partir do relacionamento dessas duas figuras, Coutinho explora as dinâmicas sociais do Nordeste, suas possibilidades e limites.
Faustão é um personagem de diversas faces, e certamente bem distante da figura que o inspirou, Falstaff. Enquanto o original é uma figura cômica, a versão de Coutinho é, antes de tudo, um líder, carismático e ardiloso, sua voz e risada são sempre altas, seu humor ácido e sempre que pode frequenta um bar. Mas não admite que suas ordens sejam contestadas, e não foge da luta. É também é uma espécie de Robin Hood ocasional, incentivando a população a pegar tudo que deseja de um mercadinho em um cena, além de extremamente leal com aqueles que estão ao seu lado.
Essa mudança é necessária pois, pouco a pouco, a relação entre Faustão e Henrique adquire contextos paternais, ganhando tons de um coming of age, em que Henrique passa a assimilar os códigos de masculinidade da região, fugindo da alcunha de “frouxo” que um dos personagens lhe dirige. Henrique dorme com prostitutas – a mesma que foi a primeira de Faustão – bebe cachaça e aprende a atirar.
Acima de tudo, o cangaceiro é agudamente perceptivo das leis que regem as relações daquela região, e é justamente quando Faustão se coloca a explicitar isso que o personagem tem seus melhores momentos. O primeiro deles é quando Henrique, após se recusar a dormir com uma prostituta, exclama ser um “prisioneiro” de Faustão, que devolve a acusação afirmando: “você está preso às leis do sertão”, afinal, se o jovem está onde está, é por causa de um conflito típico da região, e que precede a existência dos dois. Mesmo que não estivesse com o bando de cangaceiros, Henrique vive à sombra do ódio entre as famílias, que passa de geração e geração.
Conforme a trama progride, uma certa melancolia toma conta da narrativa, e ela, surpreendentemente, se manifesta nas cenas de ação do longa, que são poucas, mas vitais para a trama. Elas funcionam como uma cena típica de duelos em um western, se focando nos ambientes áridos e secos, e que são até mesmo instrumento de luta para os cangaceiros, além da clássica cena de dois grupos se encarando frente a frente em uma cidade deserta.
Mas cada um desses conflitos vêm a um custo alto para o bando, e por consequência, para o cangaço como todo, já que sempre algum companheiro é morto, e nenhuma das mortes é tratada com rapidez, a câmera de Coutinho se demora sobre os corpos desfalecidos, ou sobre os ferimentos fatais que são infligidos. O cangaço resiste, mas a cada luta, ele desaparece.
Assim, após o conflito entre os Araújo e os Pereira ser resolvido, Henrique se torna líder da família, o único coronel da região, e precisa lidar com um grave problema: o governo federal está se esforçando para acabar com o cangaço de vez, as volantes estão a caminho. Durante o tempo que passaram juntos, os dois se tornaram amigos, e o novo coronel espera convencer o amigo a largar o seu modo de vida.
Nessa cena uma espécie de inversão se realiza, em relação a cena com as prostitutas. Se na primeira Faustão acusa Henrique de estar preso a algo que começou antes mesmo dele ter nascido, aqui o cangaceiro revela estar tão preso quanto. Seu argumento para se manter como cangaceiro é afirmar que está nessa vida a muito tempo, que seu pai era cangaceiro, assim como o seu tio, e que não vai largar agora, sem perceber os paralelos entre o que acabou de dizer e as acusações que ele fez sobre a vida de Henrique na primeira cena.
Assim, a tragédia de Faustão toma força, por meio de dois homens que não conseguem escapar de seus papéis sociais, sem ver além dos papéis que lhe foram dados, e acabam ditando os ritmos de suas vidas, a “Lei do Sertão” que Faustão dizia que prendia Henrique também o prende, embora de maneira diferente. Nos versos atribuídos à Lampião que abrem o filme, está escrito “A rede dele era minha/E a minha rede era dele”. O cangaço é violento, mas há camaradagem, só que o progresso pede o fim do cangaço, e Henrique não vai resistir a essa força, enquanto Faustão só pode resistir, mesmo que isso represente seu fim.