Vemos em todos os lugares as edições dos livros do escritor americano Edgar Allan Poe sempre em cores escuras, às vezes com padrões que lembram papéis de parede de casas assombradas, como as que vemos em filmes de terror, ou com ilustrações sombrias, envolvendo corvos, gatos pretos e caveiras. Os filmes inspirados nas obras de Poe em geral mostram cenas com sangue, violência e um nível de gore algumas vezes até explícito, como um corpo sendo cortado ao meio por um pêndulo (uma cena, diga-se de passagem, digna de Jogos Mortais), no filme de James McTeigue, O Corvo (2012), ou fazem uso de cenários góticos, com mansões assombradas, esqueletos e teias de aranha, como é o caso da maioria dos filmes de Roger Corman (muitos deles com Vincent Price), lançados no decorrer dos anos 60.
Tudo isso contribuiu para o sucesso de Poe, fortificando a sua fama como mestre do terror, o que não deixa de ser verdade, sendo ele um dos principais nomes do gênero, tendo influenciado H.P Lovecraft, Stephen King, entre muitos outros grandes autores; porém, essa fama acabou por criar uma expectativa um tanto errônea em alguns leitores: ao pegar pela primeira vez um livro de Poe, muitos esperam que o texto tenha como único ou pelo menos principal objetivo causar terror, horror. O que, em geral, não é verdade.
Sinto decepcioná-lo caso essa fosse a sua expectativa, mas, não: ler Poe não vai gerar sustos daqueles de pular da cadeira, não vai fazer ninguém querer se afastar do livro de tanto medo e muito provavelmente não vai impedi-los de pegar no sono à noite. O que pode, talvez, fazer isso, é a sua imaginação após a leitura de Poe, a sua reflexão com base nos escritos dele – isto é, com base em alguns dos contos dele, pois, algo precisa ficar bem claro: Poe não escreveu somente terror. Edgar Allan Poe foi um escritor altamente prolífico, cuja obra completa compreende diversos poemas (sendo o mais famoso dele o poema narrativo O Corvo), ensaios, resenhas críticas, um romance, e diversos contos dos mais variados gêneros, desde humor, ficção científica (seu conto The Balloon Hoax foi uma das maiores influências para a escrita de Jules Verne), contos de crime, mistério e investigação (seu detetive, August Dupin, foi a inspiração para Arthur Conan Doyle criar Sherlock Holmes), e também contos de terror.
Dentre toda a obra de Poe, os contos cuja mais forte repercussão foram aqueles que seguiram a temática do terror. Porém, muitos leitores contemporâneos estão acostumados com um terror mais explícito: o monstro precisa existir, o sangue precisa jorrar no momento em que a cena ocorre, o gato morto precisa sem dúvida alguma voltar à vida como um zumbi (isso não é uma crítica a King, muito pelo contrário, apenas intenciono demonstrar como o terror contemporâneo costuma ousar a lidar com eventos sobrenaturais de forma mais explícita, enquanto Poe apostava mais em um terror sugestivo). E claro que o tipo de terror sobrenatural mais explícito não é algo apenas contemporâneo: Mary Shelley nos trouxe uma criatura feita de pedaços de cadáveres, ressuscitado; Bram Stoker nos trouxe Drácula; o terror clássico nos trouxe muito de sobrenatural.
Porém, o terror de Poe é mais sutil e, de forma geral, focado no psicológico. Poe utiliza muito do que chamamos de narrador não confiável: isto é, o que mais assusta em sua obra não é o mundo externo, mas sim o interno e a forma como este afeta tudo ao nosso redor. A dúvida entre o que é ou não real, entre a sanidade e a sanidade do narrador, é um elemento frequente em Poe. Nos seus contos, o mais apavorante em geral é o quase: o pêndulo que quase corta (que deverá cortar, mas isso não ocorre em cena), o homem que quase morre enterrado vivo, ou aquele que vai morrer emparedado, mas cuja morte é sugerida, não mostrada, o homem que matou seu gato e quase (?) acredita que o animal ressuscitou, o assassino que enlouquece, pois tem quase certeza de que escuta as batidas do coração da vítima, a pintura que parece ter tirado a vida da modelo que a inspirou.
É nesse limiar entre o natural e o sobrenatural que vive o terror de Poe. O horror, em Poe, mora na imaginação do leitor devido ao que é sugerido na narrativa. Em O Poço e o Pêndulo, é a expectativa da morte iminente o causador da tensão; em A Queda da Casa de Usher, temos um mundo envolto em melancolia, um casal de irmãos com aparência doentia, a ameaça constante, implícita, da morte e da finitude daquela família em decadência; em O Coração Denunciador, há um assassinato, mas a descrição deste é breve e não é o foco da narrativa, e não temos quase gore (com exceção de algumas cenas, como em Os Assassinados da Rua Morgue e O Gato Preto), mas sim uma crescente tensão e diversos narradores de sanidade questionável contando com estranha satisfação sobre seus crimes e seus derradeiros fins.
O terror em Poe é o desconforto causado pelo estranho, pelo inesperado, pelo abismo psicológico que todos nós carregamos, mas preferimos ignorar: isso é o mais assustador em Poe, pois ele nos força a olhar para dentro e ver que o monstro não é um ser sobrenatural, mas sim um ser humano, cuja mente fragmentada o leva a caminhos sombrios. Um grande exemplo disso é o conto O Demônio da Perversidade, no qual o narrador reflete sobre os impulsos perversos que por vezes nos acometem, e sobre o perigo de se deixar guiar por tais impulsos: o que acaba sendo o destino da maioria dos narradores dos contos mais sombrios de Poe. Portanto, quando for ler Poe, lembre-se dos parágrafos acima e deixe-se submergir na atmosfera construída pelas narrativas. Leia com atenção as entrelinhas: em Poe, o não dito pode fazer tanta diferença quando o dito. Questione os motivos dos narradores, quando o conto for escrito em primeira pessoa, para estarem revelando seus crimes ou se deixando confessá-los. Jogue o jogo narrativo de Poe e deixe a sua imaginação trabalhar em busca de solucionar os enigmas propostos por cada conto.
