A poetisa Cecília Meireles tem como traço singular de sua escrita um lirismo delicado e pungente. Além de ter sido um nome importante da literatura brasileira, Meireles também foi educadora e também jornalista, sendo uma dos intelectuais que assinou o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932.
Mas autora de poemas célebres como “Motivo” e “Retrato” também dedicou anos de sua vida a uma pesquisa minuciosa sobre um capítulo importante da história do Brasil: a “febre do ouro” de Minas Gerais e a Inconfidência Mineira. Foram 10 anos de pesquisa histórica e literária que a fizeram escrever o Romanceiro da Inconfidência, publicado pela primeira vez em 1953.
Inspirado num gênero medieval, os poemas de Cecília no livro são “romances”, escritos populares voltados para narrativas históricas. Por isso, Meireles une sua lírica singular com o conhecimento profundo sobre a realidade de Vila Rica nos tempos dos inconfidentes.
O resultado é uma obra narrativa em versos, que não pretende ao monumentalismo de um Lusíadas em contar a história dos que venceram, mas em encontrar matéria poética naqueles que respiraram esses tempos nas minas, nas senzalas, nas capelas.
Confira aqui alguns trechos da obra:
Fala inicial
Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados…
– liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.
Cenário
O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,
vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloqüência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!…”
(Esse adeus estremece a minha vida.)
Do ouro incansável
Por ódio, cobiça, inveja,
vai sendo o inferno traçado.
Os reis querem seus tributos,
– mas não se encontram vassalos.
Mil bateias vão rodando,
mil bateias sem cansaço.
Mil galerias desabam;
mil homens ficam sepultos;
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranqüilo,
que a noite é um mundo de sustos.
Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro.
Do negro das Catas
Já se ouve cantar o negro.
Que saudade, pela serra!
Os corpos, naquelas águas,
– as almas, por longe terra.
Em cada vida de escravo,
que surda, perdida guerra!
Já se ouve cantar o negro.
Por onde se encontrarão
essas estrelas sem jaça
que livram da escravidão,
pedras que, melhor que os homens,
trazem luz no coração?
Já se ouve cantar o negro.
Chora neblina, a alvorada.
Pedra miúda não vale:
liberdade é pedra grada…
(A terra toda mexida,
a água toda revirada…
Deus do céu, como é possível
penar tanto e não ter nada!)
Da destruição do ouro podre
Embaixo e em cima da terra,
O ouro um dia vai secar.
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo:
quem é bom, mandam matar.
Do Contratador Fernandes
– Vinde esquecer a tristeza
ao calor do meu teatro,
onde representam vivos
os dramas de Metastásio
glórias e vícios do mundo
em luminoso retrato.
Vinde espairecer os sonhos,
e distrair os cuidados.
Nas palavras dos poetas
reclinai vosso cansaço.
Estes sítios tornam doce
o coração mais amargo!
Da traição do conde
Como as palavras se torcem,
conforme o interesse e o tempo!
Das lamentações no Tejuco
Maldito o Conde, e maldito
esse ouro que faz escravos,
esse ouro que faz algemas,
que levanta densos muros
para as grades das cadeias,
que arma nas praças as forcas,
lavra as injustas sentenças,
arrasta pelos caminhos
vítimas que se esquartejam!
(Doze mucamas em volta
gemiam com surda pena.
Pranto e diamantes caídos
era tudo um mar de estrelas.)
Dos velhos do Tejuco
(Que a nossa vida
é a mesma coisa que a morte,
– noutra medida…)
Dos maus presságios
Mas é direção do tempo…
E a vida, em severos lances,
empobrece a quem trabalha
e enriquece os arrogantes
fidalgos e flibusteiros
que reinam mais que a Rainha
por estas minas distantes!
Das ideias
Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as idéias.
Da bandeira da Inconfidência
Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!
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