Autor: Otávio Bravo
Editora: Chiado
Ano: 2018
Páginas: 558
“Por um segundo imaginei que ela não fosse uma mulher para se tocar aqui ou ali, mas que me desafiasse a tocar de uma só vez a pele inteira.”
Budapeste, Chico Buarque
A última resenha de uma trilogia sempre é tarefa das mais difíceis: a gente começa quando muito asfalto já passou pela estrada e muita vida já correu pelos corpos das personagens. Principalmente, quando se trata de uma história que mobiliza tantos afetos e tanta empatia diante de uma figura única que é tão, ao mesmo tempo, forte e transparente, tímida e espalhafatosa em cada gesto de sua trajetória de vida. A gente, diante das palavras no papel , eramos como a rainha Elizabeth diante de uma apresentação shakesperiana no The Globe e a vida de Victor, tão marcada por tantos percalços, reviravoltas, alegrias e tristezas, aos poucos, se tornava nosso Hamlet. É este o caso, do último volume de Travessuras de Minha Menina Má, de Otávio Bravo, um relato de uma vida, mas que é a vida, pelo menos um pouco, de todos nós.
Travessuras de Minha Menina Má – livro III, de Otávio Bravo, é o terceiro romance da trilogia livremente inspirada na obra (quase) homônima de Mario Vargas Llosa: Travessuras da Menina Má. Se no primeiro volume de Bravo, não chegamos a conhecer a tal menina, mas acompanhamos a infância, adolescência e começo da vida adulta de Victor, seu personagem principal, principalmente na vivência ao lado do seu ídolo e irmão Caíque; e se no volume seguinte, tivemos o primeiro contato com Duda, a tal menina má e acompanhamos parte de sua relação com Victor, desde o primeiro momento, do apaixonamento, até um possível fim em um hotel na Cidade do Cabo; No terceiro, entramos na vida adulta de Victor, até chegar aos derradeiros momentos finais de seus dias. O maior volume dos três, com 558 páginas, neste livro, temos, logo de cara, um Victor que, após ser deixado por Duda, vive uma tresloucada vida vivendo em boates, repleto de álcool, drogas e sexo casual, ao lado de jovens que viajam a Europa atrás de instantes de fugidios de prazer, afinal de contas, como ele dizia:
“Havia nada a fazer.
Aquele era mesmo o Woodstock de um novo tempo.
Mas era o tempo de outros, não o meu.”
O que nos deixou, por um momento com a pulga atrás da orelha. Será que é mesmo Duda que causa isso? Será que a questão não é de Victor mesmo? Fato que segue ambíguo até se esgarçar em seu momento mais difícil d vida: viver nas ruas de Paris, como morador de rua efetivamente, após perder tudo que tinha, inclusive seus cartões de crédito, seu dinheiro e suas roupas. E foi aí que:
“E então, por quase um ano, e sem nem mesmo ter Virgílio a me escoltar pelas estações do infortúnio, desci aos nove círculos do Inferno.”
É do fundo do poço em que se encontrava que seu irmão, o que não era Caíque, viria resgata-lo. Após retomar a vida, Victor consegue novamente se reerguer e refazer sua carreira. E quando quase tudo se estabelece, quem retorna? Novamente Duda e, a mesma imagem, a mesma obsessão e o mesmo amor, cuja única imagem é recorrente:
“Acima de tudo, era Duda, e isso bastava – e bastaria sempre – para ter o meu perdão.”
E mais uma vez, Victor cai nas malhas de Duda e, diante de um romance, é deixado durante o ano novo, sozinho, nas ruas de Paris. Rendido novamente ao vício do álcool, ele tem um ímpeto de violência e acaba por agredir um casal que, diante de suas alucinações aparecia como Duda e seu atual noivo. E eis que Victor retorna para a prisão. E assim, a vida de Victor segue, sempre às margens de Duda.
Muito poderíamos dizer a mais sobre essa saga de nossa figura principal: a descoberta de que tinha uma filha com Duda, a criação da menina, renovando a vida em novas lições: “uma lasca de felicidade pode apagar todos os infortúnios do passado. A vida é maravilhosa porque se renova.” E mais: o seu retorno às principais faculdades da Europa, seu começo de velhice, algumas perdas, alegrias e tristezas – tudo isto, diante de idas e vindas de sua menina má, sua Maria Eduarda. Entretanto, o que me marca, a ponto de querer deixar registrado, é esta vida, que tal como previu Borges em seu Livro de Areia, se desfaz diante dos dedos de Bravo, enquanto literatura e, ao mesmo tempo, de Victor, enquanto figura de corpo, materialidade.
Trata-se de uma escrita que, parece, duplica a voz de um narrador ampliando uma biografia para a vida, a ponto de, em um dos momentos mais belos do livros, haver uma total coincidência – tal como num movimento deleuziano de Diferença e Repetição -, ou seja, de um igual que sempre se difere, entre o fato escrito e a própria escrita, através de uma potência de metalinguagem. É ela: o marido do melhor amigo de Victor, Leonardo, havia escrito um livro sobre a trajetória do rapaz com Duda.
“O livro, cuja capa tinha a imagem dissoluta de um casal que se beijava ao pôr do sol, em estilo impressionista, trazia o nome do autor, William Gravelle, na parte superior e logo abaixo, com as mesmas letras vermelhas em fonte maior, o título, escrito em francês.
“Travessuras de minha menina má”.”
A capa do livro é a mesma que temos em mão, o título também, a referência também. Seria Otávio Bravo uma espécie de alterego de seu próprio personagem? Enquanto recurso de linguagem, isto não seria em si uma novidade, há isto largamente em literatura como nos Moedeiros Falsos, de André Gide e, para ficarmos no Brasil, em Budapeste, de Chico Buarque (seria uma referência da obra? Parece que sim). E tal como no trecho final de Chico Buarque, a leitura da vida enquanto ela acontece diante de nossos olhos ou a vida que acontece enquanto a gente lê, transforma a imagem, o trajeto, em poesia.
Um breve relato pessoal: estive com este livro em minha cabeceira, em seus três volumes, desde junho, e terminei-o alguns dias atrás, dentro de um ônibus, de madrugada, enquanto voltava de Minas Gerais. O fim da leitura, enquanto fechava a página do livro e da vida de Victor, fez meu olhar mirar a janela que corria pela estrada. Tudo, de repente, fez sentido. Otávio Bravo, soube fazer da trajetória da vida, em extensão, um projeto de poesia, de transformação do mundo. Afinal, como encerra Victor: