O espetáculo Gala Dalí explora uma conversa bem-humorada com o público, na qual Gala revive, de forma não cronológica, momentos marcantes de sua vida: seu primeiro casamento com o escritor Paul Éluard, o encontro com Salvador Dalí, a luta para se impor num universo dominado por homens e o constante julgamento social. Enquanto se diverte revivendo suas lembranças, reflete sobre a paixão, a arte, a gastronomia, o dinheiro e o poder, a vida e a morte.
Se um antigo ditado diz que “por trás de um grande homem há uma grande mulher”, Gala Dalí subverte essa lógica: ela não está por trás, mas ao lado, quando não à frente, de Salvador Dalí, como parceira criativa e força motriz de seu universo artístico. Mara Carvalho assume com maestria a tarefa hercúlea de desvendar essa figura complexa, apresentando-nos não a musa passiva da história, mas a mulher que teceu sua própria mitologia.
A dramaturgia de Mara Carvalho, assim como a vida de Gala Dalí, é uma obra de arte surrealista e confessional, fragmentada, mas nunca desconexa. Com humor e profundidade, a narrativa não linear desvela os momentos decisivos de Gala, desde sua luta por autonomia num mundo masculino até suas reflexões sobre arte, poder e existência.
Ao optar por um tom íntimo, quase confessional, a peça não apenas conta, mas revive essa mulher complexa, libertando-a do papel de “musa” para revelá-la como protagonista de sua própria história. Cada fala é um ato de reconstrução identitária, começando pelo próprio nome: um manifesto de independência que ecoa até o último ato. Uma escrita tão ousada e multifacetada quanto a personagem que retrata.
Mara Carvalho entrega uma performance primorosa como Gala Dalí, fundindo pesquisa minuciosa e identificação visceral com a personagem. Seu domínio técnico transparece no corpo preciso, que dança entre memórias como num quadro surrealista, seja na angústia contida da espera por Éluard durante a guerra, seja na postura altiva que desafia o mundo masculino. A voz, instrumento múltiplo, modular e transformista, materializa não somente Gala, mas ecoa outras presenças fundamentais, como o próprio Dalí, num jogo cênico em que um único corpo habita várias existências. Mais do que interpretar, Mara encarna um manifesto de autonomia feminina.
Leia também: “Selvagem”: memórias queer, feridas abertas e a urgência de existir
A cenografia de Ulysses Cruz e a iluminação de Giovanni D’Angelo são elementos fundamentais na construção do universo surrealista e íntimo do espetáculo. Cruz, com aparente simplicidade, materializa o imaginário daliniano por meio de projeções e estruturas, transformando o palco em um espaço delirante onde passado e presente se fundem. D’Angelo, por sua vez, domina a luz com efetividade, esculpindo cada cena em focos que alternam entre o confessional e o espetacular, ora iluminando Gala como uma figura solitária em seu monólogo íntimo, ora mergulhando-a em atmosferas que evocam a dramaticidade de suas lembranças. Juntos, cenografia e luz não apenas ambientam, mas atuam como narradores silenciosos, traduzindo em formas e sombras a dualidade entre o pessoal e o mítico que define a vida de Gala Dalí.
A direção de Ulysses Cruz em Gala Dalí é uma aula de equilíbrio entre rigor estético e comunicação eficaz. Com precisão cirúrgica, Cruz costura os elementos díspares do espetáculo, a narrativa não linear, o surrealismo confessional, a atuação multifacetada de Mara Carvalho e a cenografia imersiva, em uma linguagem cênica fluida, que abraça a complexidade sem sacrificar a clareza. Sua mão firme evita que a fragmentação da memória se torne caótica, transformando-a em um jogo de espelhos no qual o público reconhece não apenas Gala, mas as “Galas” na plateia: mulheres confrontadas com as mesmas lutas por autonomia e identidade. Ao optar por uma encenação dinâmica, que alterna entre o íntimo e o espetacular sem perder o tom de conversa coloquial, Cruz democratiza o acesso ao universo denso da personagem, provando que profundidade e popularidade não são incompatíveis.
Gala Dalí se consagra como um espetáculo completo e necessário, que transcende a biografia para se tornar um manifesto sobre identidade feminina e autonomia criativa. Entre o humor e a profundidade, o surreal e o confessional, a montagem alcança um raro equilíbrio: une pesquisa histórica rigorosa com linguagem cênica inventiva; performance excepcional de Mara Carvalho com direção visionária de Ulysses Cruz. Mais do que desvendar a mulher por trás do mito, a peça a resgata como artista de sua própria vida e, nesse processo, convida o público a refletir sobre quantas “Galas” ainda lutam por seu lugar à luz própria. Um trabalho que honra a complexidade da personagem sem cair na armadilha da hagiografia, provando que teatro de qualidade pode ser, simultaneamente, poesia visual e conversa urgente com o nosso tempo.
FICHA TÉCNICA
Texto e atuação: Mara Carvalho
Direção Artística: Ulysses Cruz
Assistente de Direção: Nicolas Ahnert
Voz em off de Salvador Dalí: Pol Orozco
Iluminação: Giovanni D’Angelo
Figurinos: Ulysses Cruz e Mara Carvalho
Cenário: Ulysses Cruz
Trilha Sonora: Dan Maia
Programação visual, criação e edição de vídeos cenográficos: Emerson Brandt
Fotos de divulgação e vídeos promocionais: Jamil Kubruk
Fotos de divulgação: Rachel Pontes
Criação e confecção do trevo: Júlia Fernandes de Magalhães
Redes Sociais: Stephano Matolla
Operador de luz e vídeo: Lê Carmona
Operador de som e microfonista: Rafuz Ferraz
Cenotécnico: Joabe Fernandes
Equipe de cenografia: Júlia Fernandes de Magalhães, Treicy de Amorim Fernandes, Juan Ignácio Gomez Martinez e Rodrigo Cordeiro
Direção de Produção: Mariluz Gomez Gomez
Produção Executiva: Laura Sciulli
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
Realização: OCEAN LIGHT – Mariluz Gomez Gomez
SERVIÇO:
DIAS E HORÁRIOS: 3ª, 4ª e 5ª às 20h.
TEMPORADA: 04 de junho até 31 de julho: R$160,00 e R$80 (meia)
CAPACIDADE: 59 lugares / DURAÇÃO: 65 min
GÊNERO: Tragicômico
CLASSIFICAÇÃO: 12 anos
ACESSIBILIDADE: para um cadeirante
INGRESSOS: na bilheteria 1h antes do espetáculo ou em
ONDE: Mi Teatro – Rua Pamplona, 310 – Bela Vista /SP (estacionamento ao lado)
ATENÇÃO
O espetáculo começa RIGOROSAMENTE no horário marcado e não é permitida entrada após o início, não havendo devolução do valor do ingresso, nem a troca para outro dia ou outra sessão.