Em ótimo álbum, CATTO explora o amor como um “road movie” para dentro de si

Se “Coração Selvagem”, do David Lynch, ganhasse uma trilha em 2025, provavelmente seria “Caminhos Selvagens”, o novo álbum da Catto. Não que as duas obras estejam realmente conectadas, mas ao cantar sobre a estranheza do amor, o modo como esse sentimento se materializa e se desfaz, Catto passeia pela aura dos anos 90.

A cantora vinha de uma trajetória elogiada com “Belezas São Coisas Acesas por Dentro”, sua fábula inspirada pelas canções de Gal Costa. Ali já havia algo de “road movie” e que a artista, como em um “plano-sequência” musical, contava sobre a aventura nas montanhas do Jabitacá.

A cantora Catto — Foto: Leo Aversa

Nesse “país cheio de horror”, os amores da Catto são enterrados todos os dias. Nos sete anos de criação do álbum, o mundo desabou e a artista dispensou atalhos para encontrar a estrada de novo, seja da sua arte ou de si mesma. Para isso, “Caminhos Selvagens” amálgama a sonoridade suja dos bares de rock e dos inferninhos dos centros urbanos, das noitadas “estroboscópicas” em que as sensações, aguadas por todo tipo de entorpecente, operando uma vida furiosa. De destino em destino, canções como “Não Aprendi a Perdoar” e “Eu te amo” sintonizam a rebeldia que carece da compreensão que só o passar do tempo pode fustigar. 

Não por acaso, na lindíssima “A Solidão É Uma Festa”, Catto eleva esses elementos para dentro de si. Brinca com os símbolos e joga pela janela alguns rótulos. Outros artistas certamente expressariam essas dores por vias melodramáticas. Não que isso seja ruim, já que “todas as cartas de amor são ridículas”. Mas amparada pelo seu rock, ela debocha, chora e se desmancha como quem explode uma rodovia só pra ver o maior engarrafamento do mundo deixado para trás. 

“Para Yuri Todos os Meus Beijos” é um bom exemplo de como a delicadeza da voz da Catto, munida de sua interpretação inteligente, estaciona seus amores em lugares proibidos na memória, só que, ao mesmo tempo, acessíveis o suficiente para sempre voltar-se a eles. É como se Catto percebesse a velocidade das coisas, do quanto o atropelo parece inescapável. De repente, a vida mudou… E se “de Marcelo eu quero o mal, de Felipe o olho onde me vejo e de Ariel no mar dos meus cabelos”, talvez, seja esse o espanto da lembrança: o tempo é um acidente.

Em meio a dança de “Não te abandono mais, morro contigo”, morte e amor ganham o mesmo significado.

Nas composições, a artista escreve sobre a fossa sem perder de vista o sexo, o impulso e o risco. “Caminhos Selvagens” e “Madrigal, inclusive, estão entre as melhores canções do álbum, incorporando novas rotas ao “road movie” musical. A produção da própria artista, ao lado de Fábio Pinczowski e Jojo Inácio, encontra nas canções dolorosas um manifesto pela liberdade de ser intransigente com os próprios desejos, amar a todo instante e não perdoar os próprios pecados. São verbos importantes à obra, já que se jogar no mundo em vez de se acomodar faz parte daquilo que Catto enseja desde seus primeiros discos. É só ouvir o tango de “Saga” – ou o sambinha de “Juro por Deus” que ela canta como se o tivesse tirado da boca de Bethânia – para entender que o amor, para ela, nunca foi passional: já foi nescafé, canção e silêncio, roupa do corpo, arco de luz e lua deserta. Ou estepes usados para chegar até onde está agora.

Chama atenção, inclusive, o modo como “Madrigal” se cola à “Leite Derramado” para encerrar esta viagem, não de modo definitivo como o verso “quem diria que o fim deste mundo era eu e você” julga ser, e sim com a esperança de que a estrada não termine num desfiladeiro. Dá pra ser diferente, não dá? Em seus caminhos selvagens, Catto engole tanto Sailor e Lula, os personagens de Lynch, quanto Sherazade, a rainha das 1001 e uma noites, porque na história que essa rockstar está nos guiando, o destino final, talvez, seja o começo: ela só quer arrasar e ser feliz na segunda-feira “is over”.

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