“Entre Irmãos”: espetáculo sobre irmãos que se encontram após a morte do pai une dramas e ressentimentos com humanidade

Entre Irmãos conta a história de dois irmãos que se reencontram no velório do pai depois de 25 anos sem se ver. Enquanto o mais velho foi obrigado a renunciar suas paixões e ambições para cuidar da família, o irmão mais novo desbravou o mundo e hoje é um premiado fotojornalista. O reencontro, no entanto, é tenso, carregado de ressentimentos e mágoas. Enquanto o irmão mais velho acusa o mais novo de fugir de suas responsabilidades, o irmão mais novo o acusa de ser cúmplice dos erros cometidos pelo pai. No entanto, uma revelação do passado muda totalmente o ponto de vista dos irmãos, que precisam revisitar suas intimidades para dialogar.

O texto assinado por Otavio Martins apresenta uma estrutura simples, mas tão bem trabalhada que beira a genialidade. O objetivo da obra é revelar aos poucos a animosidade entre esses irmãos, mas de uma forma quase agridoce, pois ao mesmo tempo que há uma angústia pelo abandono fraternal, há tambémcuriosidade e afeto nesse encontro.
Martins constrói os personagens adicionando muitas camadas, como no caso do irmão mais velho, que tem ciúmes do irmão por abandonar a família, um ressentimento por ser obrigado a ocupar um lugar que não gostaria e, ao mesmo tempo, um desejo de saber o que levou ao abandono.

Além das camadas psicológicas muito bem construídas, Martins vai adicionando questões contemporâneas como a questão da homofobia de um pai com mais de 40 anos pode lidar com a descoberta de um filho gay e seu irmão bissexual. Nenhuma das questões abordadas tem um teor pedagógico, pelo contrário, Otavio Martins nos aproxima da história expressando como ele se sente com aquela situação.

Sobre as atuações, a meu ver, é importante destacar que Otavio Martins foi indicado ao prêmio Shell de 2006 com o monólogo A Noite Antes da Floresta, de Bernard-Marie Koltès, sendo um monólogo complexo. Então, para mim, havia uma expectativa em vê-lo no teatro. Expectativa essa que foi validada com sua entrada em cena. Martins possui uma atuação refinada, conseguindo transitar entre um humor carismático e acolhedor, até o drama de uma perda em 5 minutos de palco. Sua performance possui tantas nuances que permite nos sentirmos naquele velório. Fernando Pavão, o irmão mais novo, nos entrega uma atuação regular, com uma excelente presença de palco e excelente entendimento do texto.

Tecnicamente a peça se mostra eficiente e simples. Não há um cenário, mas temos em cena apenas uma luz representando o caixão, e um jogo de luz assinado por Beto de Faria que se mostra eficiente com foco na atuação dos atores.

Marcos Damigo, responsável pela direção da peça, explora o jogo de cena e troca de energia entre os atores exemplarmente, mantendo o diálogo e a dinâmica viva em cena. Isso fica evidente na quebra ao receber outros conhecidos do pai.

Entre Irmãos é uma obra que, apesar de sua estrutura aparentemente simples, consegue mergulhar fundo nas complexidades das relações familiares. Otavio Martins constrói personagens ricos em nuances, explorando mágoas, culpas e afetos de maneira orgânica, sem cair em didatismos. A direção de Marcos Damigo potencializa essa dinâmica, mantendo a tensão e a emoção sempre vivas. Mais do que um drama sobre um reencontro fraternal, a peça nos faz refletir sobre como o passado molda nossos afetos e como, muitas vezes, o diálogo só é possível quando estamos dispostos a rever nossas próprias verdades.

Ficha Técnica:
Elenco: Fernando Pavão e Otávio Martins
Direção: Marcos Damigo
Texto: Otávio Martins
Trilha Sonora: Ricardo Severo
Iluminação: Beto de Faria
Figurinos: Patrícia Scotolo
Produção: Engrenagem de Produção

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