Primeiro, vamos a uma lição de Matemática. Mário de Andrade viveu 52 anos. Deixou-nos há oito décadas. Passou três meses na Amazônia em 1927, um ano antes de publicar “Macunaíma”, um de seus dois romances. Terminou de passar a limpo as anotações sobre a viagem em 1943, mas só foram publicadas, com o título “O Turista Aprendiz”, postumamente em 1976, há quase meio século. Ainda há novidade nestes escritos, ou ao menos eles inspiram novas formas de serem contados, como o documentário híbrido Mário de Andrade: o Turista Aprendiz.
Após uma narração em off sobre tela preta, o branco invade o ecrã, para só depois começar a jornada do modernista por terras quase inexploradas. Passado o estranhamento causado pela projeção óbvia do fundo num navio cenográfico, cabe a nós relaxarmos em nossas cadeiras e aproveitarmos a viagem que faremos ao lado de Mário (Rodrigo Mercadante) e duas moças da alta sociedade paulistana, Margarida (Dora de Assis) e Dulce (Dora Freind), esta filha de Tarsila do Amaral.
Os relatos do escritor são sobretudo bem-humorados, como por exemplo sobre o filme que parecia seguir-lhes na viagem, o péssimo veículo do astro menor William Fairbanks, “Não Percas Tempo / The Cowboy and the Flapper”, de 1924. Outra experiência com cinema durante a viagem, porém, é irreal: trata-se de Mário assistindo a cenas de “Um Homem com uma Câmera”, que só estrearia em 1929. Ademais, nos escritos Mário busca fugir das palavras de impacto, que “estão sempre aquém dos acontecimentos concretos”.

A patronesse da expedição amazônica, a aristocrata dona Olívia (Lorena da Silva), serve como voz da razão – curiosa escolha – ao mandar Mário se despir de seus ares professorais e se tornar um turista aprendiz, mesmo que ela diga isso com outras palavras.
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Mário julga a mania brasileira de querer esquecer nossa herança africana em cena que é composta pelo escritor olhando no espelho. Dona Olívia havia falado anteriormente que Mário tinha avó e pai descendentes de escravos, e algumas encenações sobre o Modernismo já retratam um Mário de pele parda, como a minissérie “Aqueles Dias”.
Há espaço para a exploração da sexualidade dúbia do escritor – importante em termos de representatividade, mas nada relevante para a apreciação de suas obras. Ao mesmo tempo em que diz que carece do espírito predador dos homens, que recém haviam abusado de Dulce do Amaral, Mário fantasia com os torsos nus dos vaqueiros locais.

Mário de Andrade foi romancista, poeta, ensaísta, antropólogo, fotógrafo e fã de cinema. Era múltiplo, e O Turista Aprendiz mostra isso muito bem, ainda mais em sua forma já mencionada de documentário híbrido. Mário de Andrade teria gostado deste filme antropofágico.
Revisado por Gabriel Batista
“Mário de Andrade: O Turista Aprendiz” está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer:
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