Nutro um encantamento pela arte japonesa, sobretudo seu ritmo. Nas pinturas, no cinema, nas animações, na literatura, me atrai a ideia de silêncio que grita nessas obras. Esse silêncio não se refere à ausência do som, mas sim à ideia de pausa no tempo e no ruído externo, a ponto de se ter a atenção àquilo que se é, àquilo que o outro é. Foi com esse sentimento que li Ojiichan, do autor Oscar Nakasato, um livro sobre as vicissitudes da velhice e os recomeços no fim da vida.
Os recomeços em Ojiichan
“Um homem está velho quando não consideram mais a sua opinião.”
A primeira frase do livro já indica o tom do que virá ao longo das páginas de Ojiichan. Na história, acompanhamos Satoshi, um homem de 70 anos, a partir da sua aposentadoria como professor do sistema público de ensino. Ele vive com a sua esposa Kimiko, que sofre de demência, e uma filha que se ocupa dos cuidados da mãe. Uma fatalidade familiar o obriga a deixar sua casa e se mudar para um apartamento menor. O livro conta o cotidiano desse homem que passa a ter uma nova rotina e investiga sua identidade na etapa final de sua vida.
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No novo condomínio, Satoshi precisa se adaptar. O inconveniente de mudar para um novo espaço em condições longe das ideais, no entanto, não se transforma em lamentação ou frustração. É como se Satoshi se acomodasse à nova realidade, não como um sinal de desistência ou fraqueza, mas de sabedoria. Ele observa as pequenas oportunidades que vão sendo abertas no decorrer dos dias e as disfruta. A vizinha de edifício, o vizinho que lê no jardim, a floreira com terra seca, a cuidadora que passa a trabalhar na casa: esses personagens e elementos, pouco a pouco, se tornam novas esferas de sociabilização e de afeto, amenizando o peso da finitude.
Sobre os silêncios de Ojiichan
Apesar de ser uma obra que se passa em uma cidade paranaense e de autoria de um autor brasileiro, Ojiichan – que em japonês significa avô – é um livro de alma japonesa. Satoshi, sua esposa e amigos de gateball são descendentes de japoneses, o filho mora há décadas no Japão, seu cotidiano é permeado de palavras e expressões no idioma japonês.
Essa característica de ambientação e de personagens se traduz em um livro sem excessos, sentimentalismo ou otimismo exacerbado. Os silêncios que me encantam na arte japonesa podem ser vistos no formalismo de Satoshi com seus ex-colegas de trabalho, na aceitação perante as decepções familiares, na curiosidade tímida em relação àquilo que não conhece. No entanto, mesmo vivendo em uma aparente contenção de sentimentos, Satoshi ainda se permite desejar, se relacionar, se afeiçoar, o que o torna um personagem esférico em suas motivações. Talvez, para Satoshi, a própria velhice seja precisamente o momento de libertação daquilo que ficou reprimido pelas obrigações junto à família e à sociedade. Ainda que toda busca pela liberdade seja feito a seu tempo, à sua forma.
Semelhanças entre Ojiichan e Dias Perfeitos
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Ao acompanhar a trajetória de Satoshi, me veio à mente o filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders, que também retrata a beleza da rotina e a poesia dos gestos simples. O filme acompanha o dia a dia de Hirayama, um homem que trabalha limpando os banheiros públicos de Tóquio. Assim como Satoshi, Hirayama segue uma rotina simples: acordar, dobrar seu colchão, escovar os dentes, aparar o bigode, molhar seus vasos. Ele fala pouco e faz muito.
É interessante como ambos os personagens param e vivem o silêncio. Satoshi vai diariamente à janela em busca de um “gosto pela vida”. Hirayama percebe sombras, tira fotos de árvores, enxerga o mendigo, escuta fitas cassetes. No silêncio em si, esses homens pausam o tempo, vivem aquilo que toca suas almas e encontram a força-motriz dos seus dias “perfeitos”.
Coragem para recomeçar
Ojiichan termina como um sopro de esperança no sentido de que a vida encontra seu estado de equilíbrio, apesar do sofrimento, medo ou moral. Como o trecho célebre de Guimarães Rosa diz: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Satoshi foi corajoso – e nos ensina que, mesmo nos silêncios e recomeços, há espaço para a vida seguir seu curso.
Sobre o autor
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Oscar Nakasato nasceu em Maringá, Paraná, em 1963. Doutor em literatura brasileira, é professor na Universidade Tecnológica Federal do Paraná e autor da tese Imagens da integração e da dualidade: personagens nipo-brasileiros na ficção (Blucher, 2010). Seu romance de estreia Nihonjin ganhou o prêmio Benvirá de Literatura (2011), o prêmio literário Nikkei — Bunkyo de São Paulo (2011) e o Jabuti na categoria romance (2012). Foi colaborador do caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo, com resenhas críticas acerca da literatura japonesa.