Por volta dos dez anos de idade, meu pai começou a conversar comigo sobre filósofos. No início, mencionava pensadores da Grécia Antiga — Sócrates, Platão e Aristóteles —, trio que eu costumo brincar ser a “santíssima trindade” da filosofia. Já na minha adolescência, uma pensadora passou a fazer parte dos jantares familiares: Hannah Arendt. Seu nome surgia assiduamente no meu cotidiano, seja nos lábios de meus pais, nas aulas de história ou até mesmo em uma questão de vestibular.
Anos depois, na graduação, recorri talvez ao seu conceito mais famoso, a “banalidade do mal”, em minha pesquisa acadêmica. Hannah Arendt sempre, em algum momento, esbarra-se comigo, seja com alguém tecendo críticas negativas ou não. Dessa vez, deparei-me com seus poemas esquecidos pela crítica. Neste texto, busco enxergar Hannah Arendt para além da filosofia política, longe de Eichmann, ou Origens do totalitarismo, estou interessada em seus versos, lado pouco conhecido da alemã. Também eu danço, verso do poema Sonho, é o livro de poemas da filósofa, com tradução de Daniel Arelli, laçando em 2023, pela editora Relicário

Arendt sempre teve uma inclinação às artes, poesia e filosofia. Quando jovem, aventurou-se nas páginas de Kant, apreciava a fenomenologia cristã de Kierkegaard, filologia clássica e teatro grego antigo. A escritora Ann Heberlein, autora de Arendt entre o amor e o mal: uma biografia , enfatiza que a menina Hannah desfrutou com muito afinco as prateleiras de livros em sua casa:
Ela estava sempre com o nariz enfiado em um livro e lia de tudo, de poesia e romances até Kant e mitologia grega.
Já na vida adulta, declarou em uma entrevista a Günter Gaus, em 1964, que a poesia teve um papel crucial em sua vida. Para a pesquisadora Irmela Von Der Lühe, é possível perceber, inclusive, a influência literária e poética em seus textos filosóficos, especialmente na construção textual, os quais “[…] são marcados por um estilo genuinamente narrativo.”
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Em relação às suas referências literárias, seus conterrâneos estão na lista: Goethe, Schiller, Brecht e Rilke. Seus poetas preferidos, de alguma forma, ressoam em suas estrofes, porém, precisamos lembrar de que Hannah Arendt não era conhecida por ser poeta. Criava versos, eu diria, como um passatempo estético, uma brincadeira versificada. Logo, recordo-me do que escreve Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, “quem sabe – existirmos apenas para criar? As civilizações parece não existirem senão para produzir arte e literatura.” A poesia para Arendt, mesmo que seja feita de forma lúdica e descompromissada com a publicação, faz parte de sua experiência intelectual e, talvez, até existencial.
Mas como viver com os mortos? Fala:
Qual é o som capaz de silenciá-los?
Qual é o gesto que uma vez realizado
faz-nos enfim desejar que eles partam?
Qual lamento enfim os distanciaria
lançando um véu sobre a vista vazia?
Como nos resignemos com sua ida
e, torcendo o afeto, seguimos a vida?

Não sabemos se esses poemas, algum dia, seriam revelados em um livro publicado. Gosto de imaginar Arendt datilografando seus versos após longas horas dedicadas a ensaios para periódicos políticos. Para além das questões de moralidade, poder e política, vislumbramos os sentimentos e emoções dessa mulher. Perda, luto, lamento—como seguir vivendo após o sepulcro? O nazismo produziu montanhas de pessoas mortas.Como viver, então, com esse fato? Os mortos devem sumir, a fim de que não carreguemos o peso? A alemã faz essa pergunta no poema acima. Em outro, transparece a profunda amizade que Arendt cultivou com um de seus contemporâneos mais brilhantes, Walter Benjamin.
E a noite cairá de novo,
cairá do céu estrelado,
Com os braços em repouso
Tocamos longe, aqui ao lado.
Da escuridão nós ouvimos
melodias tão amenas.
Com elas nos despedimos
e rompemos as fileiras.
Vozes longe, ao lado as dores:
os mortos e suas vozes,
emissários que enviamos
para nos guiar ao sono.
Arendt faz a roda da poesia girar, ainda que não esteja nas primeiras prateleiras de poetas e conhecida pelos leitores de poesia. O título do livro sugere um movimento inesperado: para alguém conhecida por Origens do Totalitarismo, Arendt também dança— permitindo-se fluir entre estrofes, versos e rimas. Seus poemas revelam uma Arendt intimista, distante dos julgamentos de nazistas e das investigações sobre o horror do Holocausto. Ainda assim, sua condição de apátrida não é esquecida: “O bosque, a cidade, o caminho e a árvore são iluminados / Bem-aventurado quem lar não tem, ele ainda o vê no sonho.” O exílio é uma condição conhecida desde a infância, quando precisou fugir por causa da Primeira Guerra. Não ter um lugar para chamar de seu ultrapassa suas obras políticas e ecoa, sobretudo, em sua subjetividade. Neste livro, encontramos Hannah Arendt dançando, “livre do peso no escuro / no imenso.”
Bibliografia utilizada:
HARBELEIN, Ann. Arendt: Entre o amor e o mal: Uma biografia; tradução do sueco Kristin Lie Garrubo. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
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