Desenhar é um gesto tão natural quanto respirar. Crianças desenham antes mesmo de aprenderem a escrever; suas linhas são livres, experimentais, carregadas de intuição e descoberta. No entanto, conforme crescemos, a liberdade desse traço muitas vezes se perde. A técnica, a exigência de precisão e a busca pela representação fiel tomam o lugar da espontaneidade, e o ato de desenhar se torna um território restrito àqueles considerados “talentosos”. Mas e se o desenho for muito mais do que uma habilidade técnica? E se ele for um pensamento visual, um gesto, uma extensão do corpo e da mente?

Essas são algumas das reflexões presentes em O Corpo da Linha: Notações sobre o Desenho, de Edith Derdyk. Longe de ser um manual, o livro se apresenta como uma investigação profunda sobre o desenho em sua essência. Derdyk escreve com a sensibilidade de quem compreende que o traço não é apenas uma ferramenta de representação, mas um campo de liberdade e expressão. Seu texto flui entre a filosofia, a arte e a pedagogia, construindo um convite para que revisitemos nossa relação com o ato de desenhar.
A autora explora a linha como um prolongamento do corpo, como um movimento que se desenrola no espaço e no tempo. Para ela, o desenho não se limita à superfície do papel, mas se manifesta na forma como habitamos o mundo, nos gestos cotidianos, na maneira como percebemos e organizamos o que nos cerca. A linha é viva, errante, inacabada – e justamente por isso, cheia de potência.
Ao longo da leitura, fui tomada por um sentimento de redescoberta. Como arte-educadora, minha trajetória no desenho sempre esteve ligada à técnica e ao rigor acadêmico. Desde criança, aprendi que um bom desenho era aquele bem estruturado, equilibrado, preciso. O livro de Derdyk, no entanto, me apresentou uma outra possibilidade: a de um desenho que respira, que não precisa se prender a formas preestabelecidas, que pode ser um gesto de pensamento e experimentação.
Essa percepção ecoa a experiência de muitos outros desenhistas que, ao longo da vida, se afastaram da prática por acreditarem que não desenhavam “bem o suficiente”. A abordagem de Derdyk, no entanto, desmonta essa lógica. Seu texto nos lembra que desenhar não precisa ser um ato de perfeição, mas sim de expressão. Cada linha contém um vestígio do corpo, um rastro de movimento, um instante capturado entre o gesto e a intenção.
O livro também se apoia em referências a artistas, filósofos e teóricos que enxergaram o desenho para além da técnica. A autora dialoga com nomes como Paul Klee, que via o traço como um percurso, um deslocamento no espaço, e com filósofos que compreendem o desenho como uma forma de pensamento visual. Essa interseção entre teoria e prática torna a leitura instigante não apenas para artistas, mas também para educadores, pesquisadores e qualquer pessoa que deseje repensar sua relação com o desenho.

Ao chegar às últimas páginas, senti que algo dentro de mim havia se deslocado. O Corpo da Linha não apenas reafirmou a importância do desenho na minha vida, mas também me permitiu olhar para ele com novos olhos: menos críticos, mais curiosos. A leitura me provocou a resgatar um traço mais livre, menos preocupado com resultados, mais interessado no processo.
Com uma escrita envolvente e um olhar profundamente sensível, Edith Derdyk nos convida a soltar a linha, a nos perdermos no percurso, a redescobrirmos o prazer do traço sem medo. Seu livro é um manifesto em defesa do desenho como pensamento, como liberdade e como uma forma de existência. Para qualquer pessoa que já se sentiu afastada do desenho, essa leitura é um chamado para voltar – e, dessa vez, permanecer.
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