O que é primordial, afinal, em uma canção? A letra? A melodia? Ou ambas? Para a pesquisadora Solange de Oliveira (UFMG), há uma relação demasiadamente complexa: “[…] alguns pesquisadores defendem o predomínio do musical sobre o verbal. Outros atribuem igual peso aos dois elementos, enquanto um terceiro grupo focaliza a tensão entre letra e melodia.” Um exemplo dessa multiplicidade de interpretações, é o caso de Paul McCartney, um dos músicos mais famosos do mundo revela, por meio de sua escrita de canções, os bastidores de seu processo criativo. Acorda, ocasionalmente, com uma melodia na mente, escreve uma letra para tentar encaixá-la na canção, às vezes, o processo é inverso.

O artista dispensa apresentações. Integrante de uma das maiores bandas de todos os tempos, o eterno Beatle — hoje com 82 anos — abre seus cadernos de composição para compartilhar o que passava por sua cabeça ao escrever determinadas letras. Organizado em parceria com o poeta Paul Muldoon, o livro apresenta as canções em ordem alfabética. Assim, somos convidados a passear com o autor por suas memórias. Como em uma lembrança fragmentada, vamos e voltamos no tempo, passando pelas fases dos Beatles, dos Wings e da carreira solo do cantor.

Algumas pessoas, quando chegam a certa idade, gostam de consultar o diário e relembrar os fatos do cotidiano de antigamente. Esse tipo de caderno eu não tenho. Mas tenho as minhas canções – centenas delas —, que na prática servem para a mesma finalidade. E essas canções abrangem a minha vida inteira, porque, desde os quatorze anos, quando adquiri meu primeiro violão em nossa casinha em Liverpool, o meu instinto natural foi começar a compor canções. Desde então, nunca mais parei.
As letras são acompanhadas por pequenos ensaios de Paul, nos quais ele revela os contextos das composições, suas influências musicais e episódios da vida pessoal. McCartney se mostra um atento observador do cotidiano — alguém que transforma banalidades em poesia com naturalidade. Muitas vezes, une fatos simples do dia a dia a exercícios de pura imaginação. É o caso de Eleanor Rigby — uma das minhas favoritas, diga-se de passagem —, inspirada nas velhinhas que Paul conheceu na adolescência. Ele próprio comenta que, olhando em retrospecto, era algo curioso: enquanto outros garotos estavam ocupados com diversões típicas da juventude, ele passava as tardes na cozinha de uma senhora solitária. “[…] Só de ouvir suas histórias, a minha alma se enriquecia, influenciando as canções que eu escreveria mais tarde”, relembra.
Ao escutar a música, reparamos que Paul não conta exatamente como eram as tardes na cozinha da senhora solitária. O ato de sentar e ouvir as narrativas da mulher é transformado em melodia cuja letra está carregada de imaginação, fatos e até suposições de fãs. Já o devaneio, juntamente com a maconha, impulsionava a criatividade do artista. É o exemplo de Paperback writer. Os Beatles estavam à procura de temas para além de relacionamentos amorosos. Paul comenta que possuía o devaneio de ser romancista, então, se imaginou escrevendo uma carta a uma editora pedindo uma oportunidade:
It’s a thousand pages, give or take a few
I’ll be writing more in a week or two
I can make it longer if you like the style
I can change it ‘round, but I want to be a paperback writer

Na época em que escreveu a música, Paul McCartney convivia com diversos dramaturgos e poetas, como John Mortimer e Kingsley Amis. Ele também menciona o hábito de frequentar livrarias desde os tempos de garoto, em Liverpool. Paperback Writer revela sua faceta literária — quase como um autor de folhetins da era vitoriana, dando voz a um escritor que tenta, justamente, publicar capítulos semanais: barato, acessível e voltado ao grande público.
O livro não se propõe a contar a história dos Beatles, apesar de ser o grupo no qual o baixista se consagrou. O musicista nos conta sua relação com as letras que escreveu, desde os quinze anos. Paul acredita que uma boa música pode mudar o dia de alguém. De fato. Lembro-me da primeira vez em que ouvi os rapazes de Liverpool. Estava em um quartinho onde meu pai costumava trabalhar no computador, ainda era anos 2000 e não existia Spotify. No trambolho do computador, havia uma seleção desordenada de músicas dos Beatles, cliquei na faixa um. A música era Help! cuja letra não foi escrita por McCartney, e sim pelo seu parceiro de banda, outro lendário das composições, John Lennon. A partir de então, a boyband da década de sessenta passou a me acompanhar.

A experiência de ler As Letras, após anos acompanhando a banda que já não existe e McCartney — ainda em plena atividade — é como entrar na mente do músico e presenciar o instante exato em que os substantivos, adjetivos, ou mesmo palavras que o autor não conseguia tirar da cabeça surgiram — muitas vezes, até antes da melodia. O olhar de Paul McCartney está sempre atento aos detalhes.
Bibliografia consultada:
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Canção: letras x estrutura musical. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, [S. l.], v. 14, n. 2, p. 322–333, 2006. DOI: 10.17851/2317-2096.14.2.322-333. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/18103. Acesso em: 13 abr. 2025.
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