É curioso, para não dizer irônico, que o último filme, póstumo, de um diretor como José Barahona seja intitulado justamente Sobreviventes. Um curioso caso de relato sobre a escravidão no Brasil pelos olhos de um diretor-roteirista português, o filme soa como a releitura de um clássico ao desafiar a ordem então vigente e criar novas relações de poder em ambiente inóspito.
Seis pessoas sobreviveram a um naufrágio. São três portugueses e três brasileiros. Quatro são homens, duas são mulheres. São eles: o padre Angelim (Paulo Azevedo), o fidalgo Fradique Mendes (Miguel Damião), a aristocrata Dona Emília (Anabela Moreira) e sua filha moça Inês (Kim Ostrowskij), o marinheiro Gregório da Mata (Roberto Bomtempo) e o mordomo de Dona Emília, João Salvador (Allex Miranda). O lugar é alguma ilha do Atlântico. O tempo, século XIX.
Por suas habilidades, João Salvador começa a comandar o bando. Ele encontra água, pesca peixes e prepara refeições improvisadas. Não aceita que façam uma fogueira sinalizando para os barcos que passam no horizonte: se forem resgatados e voltarem ao Brasil, significará para ele o retorno à escravidão. O que se segue com o desenrolar dos acontecimentos é uma inversão da ordem corrente na época.

O padre se mostra a figura mais preconceituosa, dizendo que “preto não é gente, preto é peça”. Ele insiste para que amarrem João Salvador nas pedras, com a maré batendo como um chicote. Seus modos espelham a posição da Igreja Católica com relação à escravidão: mais do que fechar os olhos para o que acontecia, a Igreja aprovava a prática com a justificativa de que negros não tinham alma, por isso poderiam ser escravizados. Em Sobreviventes, o padre Angelim afirma que “a escravatura é um mal necessário”, mas considera o inverso, negros escravizando brancos, uma “abominação”.
Vem da boca de Fradique Mendes a crítica à sociedade brasileira da época. Ele afirma encontrar nobreza apenas entre aqueles que Dona Emília chama de “malandros”, os pretos e pardos. Os brancos são em geral canalhas, comprando falsos títulos de nobreza para se sentirem superiores. Essa observação só poderia vir da mente de Barahona, que buscava em sua obra uma releitura do passado de exploração do Brasil por Portugal.
Quem vê o filme ou mesmo só lê a sinopse provavelmente se lembra de O Senhor das Moscas, romance de William Golding de 1954 que foi adaptado para o cinema em 1963 e novamente em 1990. O roteiro de Sobreviventes foi escrito por Barahona junto ao angolano José Eduardo Agualusa, cujo maior interesse neste trabalho “foi trazer a voz dos africanos, trazer a perspectiva desses africanos sobreviventes. Mostrar que eles nunca foram sujeitos passivos da sua história, foram sujeitos ativos dessa mesma história. Os africanos sobrevivem ao naufrágio, mas sobrevivem, sobretudo, a um processo de sequestro. Então, esse foi todo o meu esforço maior”.
Leia também: Livro de Agualusa revisita a história angolana do século 17

Sobreviventes não é o primeiro filme em preto e branco a reunir um grupo heterogêneo e cheio de conflitos internos num mesmo ambiente após um naufrágio. Tirando a parte do naufrágio, este filme lembra muito Limite, clássico de 1931 votado como o melhor filme brasileiro de todos os tempos pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Mas com o naufrágio há um exemplo bem melhor, que conversa em perfeita sintonia com Sobreviventes: Um Barco e Nove Destinos, de 1944, considerado uma obra menor na carreira do diretor Alfred Hitchcock, mas mesmo assim um filme brilhante.
Em mais um caso de filme que nos faz o questionamento “o que eu faria se estivesse nessa situação”, Sobreviventes é uma reparação histórica, praticamente uma catarse, mas acima de tudo uma provocação sobre o que pode ser considerada a “ordem natural”. É, sem dúvida, um belo legado do cineasta lusitano que mais se aproximou do cinema brasileiro.
Revisado: Gabriel Batista
Sobreviventes estreia no cinema em 24 de abril. Confira o trailer:
Ajude a manter o Nota vivo! Contribua no Apoia.se!
