A edição bilíngue de “Bestiário”, de Pablo Neruda, publicada em 2024 pela L&PM, é uma obra de arte: nela temos doze poemas do poeta chileno Pablo Neruda, os quais são intitulados como odes a diferentes animais, e prestam homenagem a eles. O livro é resultado de um trabalho de compilação do editor e tradutor Giuseppe Belline, para o qual Neruda afirmara, em uma carta em 1964, que tinha a intenção de criar uma coletânea de poemas assim chamada.

A compilação foi traduzida por José Eduardo de Grazia, e é acompanhada, nesta edição, de belas ilustrações de Luis Scafati, e também de um prólogo por Reina María Rodríguez, que nos introduz liricamente à temática dos versos, sustentando que “todo escritor tem, portanto, seu Bestiário particular, em que reflete alguma inquietação do seu ser” (2024, p. 9). Não apenas inquietações internas, como costumamos encontrar em diversos poetas, mas em relação ao ambiente que o cerca, aos animais, e seus comportamentos, suas completudes e aspectos diversos.
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Por exemplo, em “Ode ao Gato”, Neruda versa como o gato “surgiu completo”, e reflete sobre como outros animais poderiam desejar serem diferentes, uma inquietação muito humana, que ele aqui atribui não apenas aos humanos, como também à serpente, o cão, a mosca, etc, listando inclusive “o engenheiro” como um animal, bem como “o poeta”, o que nos faz pensar em o que o poema considera, de fato, animal, sendo o homem e suas profissões também animais.

A forma como Neruda introduz os animais aos versos nem sempre é direta, muitas vezes ambientando-os e então apresentando-os, como é o caso de “Ode à pantera negra”, em que o animal aparece apenas, de fato, mais para a metade do poema. A ambientação construída para a introdução do animal título cria uma expectativa no leitor, tal qual fizera Poe em seu poema “O Corvo”, de 1845, em que temos a ave no título, mas a mesma entra em cena apenas na sétime estrofe.

As formas com que Neruda descreve os animais trazem metáforas que misturam os seres, provocando reflexões de qual a distância entre eles e nós, humanos, os comparando conosco em atributos e comportamentos, e elevando-os a patamares que, senão superiores, tendem a níveis diferenciados, como é o caso da própria pantera, cujos olhos Neruda afirma serem
“dois
selos
impenetráveis
que fechavam
até a eternidade
uma porta selvagem”.

Seus versos constroem imagens poéticas com poucas palavras, trabalhando ao mesmo passo sonoridade e significado, o que pode ser verificado também nas versões originais dos poemas em espanhol, presentes na segunda parte do livro. Como afirma Reina María Rodríguez, em seu belíssimo prólogo para a presente edição, a escrita de Neruda, unida às artes de Luis Scafati, “provoca uma terceira dimensão onde as formas revivem mais além das páginas, modificando a ideia de separar fantasia e realidade, mesclando-as” (2024, p. 10), e podemos ir além e afirmar que a experiência da leitura dos poemas pode ser considerada uma espécie de quarta dimensão, em que mesclam-se leitor, obra, poeta e ilustrador, os versos e as artes trabalhando juntos e formando novos reflexos no espelho da perspectiva de cada leitor.