“Quando o Brasil olha para o sul e quando o sul olha para si mesmo, o que ele vê?”. A pergunta é dos muitos pontos cardeais que o poeta Jr. Bellé segue em “Retorno ao Ventre” (Editora Elefante, 168 páginas). Vencedor do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2023, na categoria “poesia”, o livro é um registro cartográfico sobre como as suas raízes familiares entortaram as fronteiras de seu estado de origem, o Paraná.
Refazer as linhas imaginárias, inclusive, esteve no centro da expedição encampada pelo avô do escritor, um renomado bugreiro alemão. Mas se o propósito da “marcha para o oeste” era para além da ocupação das terras indígenas, ocultando, de fato, o legado dos primeiros povos, a expiação de Jr. Bellé não parece buscar o perdão da História, como percebemos neste trecho de “Apagamento”:
“o vazio estava especialmente cheio de mỹnh
estava cheio de nós
era em direção a este grande vazio de gente
a este imenso sertão desabitado
que o capitão josé ozório e sua comitiva marchavam
um vazio que ele chamava de campos de guarapuava
mas que o próprio vazio chamava de koran-bang-re
um vazio que ele chamava de terras devolutas
mas que o próprio vazio chamava de ẽmã
mas que o próprio vazio chamava de casa”

Para o autor, esse “vazio de gente” ainda corrói a história dos Kaingang, os povos originários que viveram e ainda vivem no sul do país. Por isso, na criação desta obra se fez necessário mesclar dados, datas e descrições históricas aos poemas de maneira integral. Mas para entender como “Retorno ao Ventre” vai dedilhar essa mistura, é preciso voltar em “Clarão”, o poema que abre o livro. No texto, tia Pêdra fala sobre a ligação da família com o extermínio. E ao longo da obra, essa revelação vai atravessar Bellé como uma flecha:
“você mimou meus monstros dengou meus demônios
deixou que corressem soltos
e se amassem e se reproduzissem
que habitassem meus mares meus vales
montanhas e pesadelos
que fizessem casa e fizessem fogo na caverna dos meus ossos
enquanto eu dormia — tia
você velava minha multidão”
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Afora a beleza dos versos, chama atenção o cuidado gramatical do autor, mimetizando uma exploração territorial por meio da linguagem. A ausência de vírgulas, por exemplo, está relacionada à temática do livro, pois ao abolir esse sinal de pontuação que serve para separar termos, orações e demais elementos, Bellé libera a cadência do texto. Não impõem um ritmo, um tempo, embora eles existam. Sua escrita quer resgatar uma oralidade Kaingang, tão própria quanto propícia, que fora enterrada pela cultura branca. Em alguns trechos, por exemplo, é possível ouvir as vozes ancestrais:
“guerreiro vãsỹ eu peço valia
valei-me de noite valei-me de dia
guerreira vãsỹ eu peço valia
valha-me a morte valha-me a vida
guerreiros vãsỹ eu peço valia”
Duas vozes
“Retorno ao ventre” foi escrito em português, mas traduzido integralmente ao idioma Kaingang. Logo, as duas versões dos poemas ficam lado a lado. É um tremendo feito da edição da editora Elefante porque se estamos lendo como o homem branco invadiu o território indígena, se os textos retratam essa disputa sanguinária, se a língua é a pátria-mãe e permite a polinização da história pelas eras, ainda que não compreendamos esse idioma, ele faz parte de quem fomos.
Toda essa busca por uma identidade, contudo, se filtra pelo confronto entre o autor e a tia, que está sendo consumida pelo Alzheimer em um leito de hospital. Não por acaso, “Kofá” é um dos poemas mais bonitos do livro:

A investigação de Bellé está dividida em quatro partes: encontro, memória, partida e retorno. Mas o escritor não isola a culpa do declínio dos Kaingang somente ao seu passado. Em “O Bugreiro”, Bellé distende o significado dessa palavra para outras civilizações e consegue incluí-la nos termos racistas usados ainda hoje, como uma chance de “escrever como quem escreve uma vingança”. A peste branca – talvez, em alusão à pandemia recente – e os modos como o autor retrata os milicianos, figuras tão presentes na política brasileira e opositores de qualquer política pública voltada aos indígenas, empurram o que parece distante para dentro das nossas cidades, das nossas escolas e apartamentos.
E embora o livro trate de fatores coletivos como a necessidade de dar guarida para as florestas, rios e povos originários, é a figura da tia Pêdra que avoluma – para o bem ou para o mal – a beleza desse retorno. Afinal, como escreve Jr. Bellé,
“tia
não ter para onde ir
pode ser o começo da partida
quem sabe a solidão
seja um princípio de partilha.”
Retorno ao ventre:
Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ
Autor: Jr. Bellé
Edição: Tadeu Breda
Preparação: Camila Campos de Almeida
Tradução para o kaingang: André Luís Caetano
Revisão do kaingang: Lorecir Koremág Ferreira
Revisão: Luiza Brandino
Capa: Alles Blau Estúdio
Ilustração da capa: Moara Tupinambá
Direção de arte: Bianca Oliveira
Projeto gráfico: Bianca Oliveira & Sidney Schunck
Diagramação: Daniela Taira
Lançamento: julho de 2024
Páginas: 168
Dimensões: 13,5 x 21 cm
ISBN: 9786560080423