A partir de imagens raras do cantor e compositor, o filme narra com maestria a trajetória de Melodia e destaca sua originilidade e criação inventiva. Nascido e criado no morro de São Carlos, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, Luiz Carlos dos Santos adota o sobrenome artístico herdado do pai, o também músico e compositor Oswaldo Melodia. Assim, Luiz Melodia entra em cena nos anos 1970.
Através de recortes da vida do artista desde sua origem humilde à consagração, o documentário ressalta as parcerias musicais de Melodia, seus amores e entraves com gravadoras que o queriam como sambista, rótulo que ele nunca quis carregar. Era eclético e plural. O filme destaca também a aproximação entre Melodia, Waly Salomão e Torquato Neto. Foi por meio dessa amizade que o cantor chegou até Gal Costa, que decidiu gravar “Pérola Negra” e incluir a composição de Melodia no repertório de seu show histórico “ Fa-tal – A todo vapor” em 1971. A partir daí todos queriam saber quem era o autor por trás da canção gravada pela maior cantora do país.
O encontro entre Luiz Melodia e os poetas tropicalistas influenciou diretamente na carreira do artista, como afirma a diretora musical do filme e amiga pessoal de Melodia, Patrícia Palumbo:
“Melodia era fã de Torquato – que o elogiava muito em sua coluna Geléia Geral, e eu vejo alguma semelhança em seus versos. Waly foi muito próximo e sem dúvida foi grande influência até no comportamento dele. Mas, curiosamente, ele nunca gravou um poema, ou uma letra escrita por eles. Eu vejo como uma turma não assumida, Luiz também era um poeta”.
Narrado pelo próprio Melodia, o documentário destaca momentos gloriosos de sua carreira e também episódios não tão agradáveis como os embates com as gravadoras que queriam fazer do artista que leva no sobrenome o ritmo, seguir apenas uma diretriz. No filme, podemos ver Luiz Melodia respondendo à jornalistas sobre o assunto e sendo acusado de ter fama de “maldito” por não se dobrar aos desejos da mídia da época.
– O filme não tem essa função explicitamente, mas mostra que o racismo estrutural no Brasil é uma verdade. São muitos os artistas como ele, tachados de malditos ou “esquecidos” pela indústria da música. Luiz Melodia fez um deslocamento social a partir da arte e foi coerente e fiel às suas escolhas. Isso desequilibra o que as classes dominantes esperam de pessoas como ele, desequilibra o domínio, a opressão. Um artista é por excelência um rebelde, um criador, não pode se limitar pela pressão do que esperam dele. Ele sabia que a originalidade era seu valor. Um poeta, um músico pós-tropicalista, essencialmente brasileiro e, por isso mesmo, diverso – reflete Patrícia.
Com um trabalho primoroso de pesquisa de arquivos inéditos e raros, o longa venceu o prêmio da 16° edição do In-Edit Brasil, o Festival Internacional do Documentário Musical, em 2024. Além de trazer cenas especiais da vida de Melodia, o documentário exibe trechos da cidade do Rio de Janeiro, e sobretudo, do Morro de São Carlos, cenário cantado por Melodia em várias de suas composições.
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– O trabalho de pesquisa da Camilla Camargo foi fundamental para podermos contar essa história. Além da voz dele, usamos entrevistas antigas, imagens reunidas ao longo dos anos por Jane Reis e um super 8 resgatado dos tempos em que ele se isolou na Bahia. Tudo muito precioso. E na montagem buscamos filmes de época para completar a narrativa – me contou Patrícia.
Melodia em uma obra vasta, única e atemporal
A obra de Luiz Melodia é vasta, única e atemporal. O longa passeia por diferentes momentos de sua trajetória musical e destaca suas canções mais famosas e outras que ficaram um pouco escondidas. Pergunto para Patrícia quais canções não poderiam ficar de fora se tivéssemos que montar uma playlist com o repertório do Melodia hoje.
– Os três primeiros discos são essenciais: “Pérola Negra”, “Maravilhas Contemporâneas” e “Mico de Circo”. E gosto muito de incluir um Luiz intérprete, uma das vozes mais lindas do Brasil. Assim recomendo o disco “Estação Melodia” e uma canção de Ronaldo Bastos e Celso Fonseca chamada “Ela Vai Pro Mar”, uma delícia pra ouvir repetidas vezes – sugere Patrícia.
Quando um poeta ou compositor escreve sobre sua cidade de origem, sua obra, de certo modo, fica atrelado àquele lugar e o eterniza através da poesia. Assim como Rita Lee cantou São Paulo, Arlindo Cruz Madureira, Dorival Caymmi a Bahia. Luiz Melodia cantou o Estácio de Sá. Sua obra se confunde com o bairro.
– Tem tudo do Estácio na trajetória dele. A escuta do que tocava no rádio quando ele era menino, as pastoras e a escola de samba, os regionais. E no filme tem alguns momentos muito bonitos que mostram isso, quando ele canta “Questão de Posse” e o doc mostra o morro de São Carlos. Quando ele dança mostrando como ser um menino do morro deu naquele gingado, e quando ele canta “Estácio, Holly Estácio” no Circo Voador com a camisa da Escola – destaca Patrícia.
No filme, Melodia conta que foi Wally Salomão quem apresentou Gal a ele. A partir daí uma parceria se estabelece entre os dois e logo depois Maria Bethânia também grava uma composição dele. O repertório de Luiz Melodia é extraordinário e, por isso, merece ser revisitado e descoberto por outras gerações.
– Ele amava “Estácio, Holly Estácio” gravada por Bethânia. Gal ele considerava madrinha. Zezé Motta foi amiga e parceira de sucessos. Mas ele me disse mais de uma vez que gostaria que o gravassem mais. Acho que Melodia ficaria feliz em ouvir o trabalho produzido ano passado por Mahmundi com algumas de suas canções. O cancioneiro dele é lindo. Deveriam visitar mais – analisa Patrícia.
O longa-metragem, dirigido por Alessandra Dorgan, estreou dia 16 de janeiro nos cinemas do país.