Foi numa sexta-feira de maio que corri (e quase me atrasei) para a sessão das 19 horas de “O Veneno no Teatro”, espetáculo que tem direção de Eduardo Figueiredo e conta com o imenso Osmar Prado ao lado de Maurício Machado no elenco. O texto é do espanhol Rodolf Sirera, autor nascido em 1948, de quem eu só tinha ouvido falar enquanto teórico, mas em breve pesquisa descobri ser ele também um dos renovadores do teatro valenciano atuando como crítico, pesquisador, entre outras tarefas.
A peça é um mergulho filosófico e metalinguístico nas grandes disputas que temos dentro da gente, entre ciência e arte, estética e ética. Um ator é convidado para ir a casa de um marquês e é recebido por um criado. Aos poucos, este ator vai descobrindo que está participando de uma trama do marquês que o coloca dentro de um jogo teatral que é difícil escapar.
No melhor estilo “uma peça dentro de uma peça”, a gente se vê reduplicado na figura do ator que atua e dentro da atuação precisa atuar para sobreviver. Tudo isso comandado pela figura do marquês, interpretado por Osmar Prado e acompanhado pelo violoncelo do músico Matias Roque Fidelis que cria climas e atmosferas sonoras ao vivo.
Diante de um texto difícil, que teve tradução de Hugo Coelho, talvez o maior desafio seria não deixar o espetáculo demasiadamente literário e isto foi conseguido com maestria. No entanto, também é possível notar certa camada de um teatro mais antigo que dá ares um pouco aristocráticos para o conjunto. Isto, em determinados momentos é magistral, em outros, beira e encosta em um limite do palavrório verborrágico. Mas tudo bem, até porque são dos muitos quebras-molas ultrapassados que se faz boa arte. E, no fim, quando a gente se acostuma com a forma, o espetáculo flui e engata.
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O mais importante, no entanto, é tudo que é discutido pelo espetáculo e que assombra todos nós enquanto sociedade: “O Veneno do Teatro” nos coloca de cara com uma divisão de classe óbvia e inescapável, embora aparentemente móvel. De um lado, um ator que se vê como superior a um servo. Em seguida, este mesmo ator diante do marquês, como sendo alguém inferior a ele – e sempre será assim – embora tenha ascendido socialmente. As alternâncias das lógicas do mundo e as forças e dinâmicas internas entre apenas duas figuras faz do espetáculo um grande retrato do nosso século XX. Ou será o anúncio de um futuro?
Diante de um cena claustrofóbica, cerrada para nós e para eles, as personagens entram numa trama torturante que encena uma crise típica do pós-guerra: estamos devastados para existir, temos medo de uma próxima guerra, mas precisamos, mais do que nunca, nos proteger.
Ficamos frente a uma disputa incessante por um poder que inexiste, diante de uma morte iminente que assombra ambos os personagens. Um porque quer ver suas teorias em prática, o outro porque se vê sem poder sem sua voz.
No fim, “O Veneno do Teatro” é justamente sobre isso: sobre se contaminar pelas dores do mundo e, por osmose, só ser capaz de reproduzir essa violência. Sobre estar numa cilada de precisar contar o próprio tempo, mas morrer também por causa do próprio tempo. E, não sendo possível escapar, o que resta é passar as dores para alguém. Para o outro, para a plateia…até que alguém decida interromper esse fluxo.