Resenha do livro “Filhos de sangue e outras histórias”, de Octavia E. Butler publicado pela Editora Morro Branco
Alguns gêneros literários, a meu ver, são os mais propícios para algumas experiências. É o caso, por exemplo, do formato dos contos ou das histórias de fantasia. Acontece que, por serem menos vigiados pela “inteligência” dos intelectuais, podem trafegar por mares obscuros em suas criações. Acredito que a ficção científica, gênero de grande público, mas comumente de pouco apreço dos acadêmicos, entra também neste campo.
Entretanto, e esta é a mágica da literatura, ainda assim os gêneros vão encontrando seus cânones, suas regras, seus padrões e suas repetições, muito porque, ainda que haja variações, são geralmente artes escritas por um mesmo hall de escritores: homens, brancos, de classe média. A arte fica, por vezes, em banho maria.
Isto até a chegada de um nome como o de Octavia E. Butler, mulher negra, vinda das classes mais pobres dos Estados Unidos e que resolve encarar a ficção científica. O resultado? Um diagnóstico assustador de como somos e do quanto precisamos mudar.
Comento hoje “Filhos de sangue e outras histórias” da autora estadunidense Octavia E. Butler, publicado pela Editora Morro Branco com tradução de Heci Regina Candiani. O livro é uma coletânea de histórias da escritora negra de ficção científica mais celebrada da atualidade. Mas aqui nem todas elas são histórias de ficção científica.
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“Filhos de sangue e outras histórias” é dividido em três partes: a primeira contém os contos propriamente ditos, tendo como abertura o conto que dá título ao livro. Para os amantes de literatura e para aqueles também desejam escrever, o livro traz também, na segunda parte, dois ensaios em que a autora conta passo a passo a sua trajetória como escritora e também dá uma série de dicas para quem quer mergulhar no mundo da literatura.
Por fim, o livro inclui mais duas histórias, “novas histórias” com novas abordagens também para o gênero. O mais interessante é que ao final de cada história, a autora comenta e explica qual foi a inspiração para que o texto tenha sido escrito, então, a todo instante estamos diante de uma obra e de uma meta-obra, ou seja, um livro que enquanto lemos está pensando a si próprio.
Algumas histórias de Filhos de Sangue, de Octávia E. Butler
A primeira delas, “Filhos de sangue” conta a história de um mundo em que os seres humanos são criados e utilizados como barriga de aluguel, incubadora para seres de outro planeta terem seus filhos. No caso, um jovem havia sido criado desde jovem para essa função e, um dia, se vê tendo que assistir um parto, o mesmo que ele faria no futuro, enquanto “grávido”. No fim, diante da crise de se ver num futuro possível, Octávia Butler cria uma bonita alegoria sobre a possibilidade de ver um homem desejando, de verdade, de alma, um filho. Grávido, ele está ali carregando por amor um filho seu.
Outro conto bem interessante é “Sons de fala” em que uma moça chamada Rye (trigo) está viajando pelos Estados Unidos após uma espécie de pandemia matar sua família e trazer um mundo apocalíptico em que os seres humanos perderam a capacidade básica de comunicação. Diante do caos, ela encontra um policial e acredita que pode, com ele, retormar uma mínima normalidade, quando um inesperado acontece.
O curioso deste conto está no fato de que Butler expõe a violência da linguagem, mas principalmente a violência da não-linguagem, ou seja, em como falar e escutar mantém a sociedade funcionando em seu fio fino que, diante de uma doença simples, se desfaz completamente entre caos e violência. Assim, falar, dizer, contar e, em especial, escutar é o que faz da gente humanos, demasiado humanos.
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Por fim, destaco também “O livro de Martha” em que uma moça chamada Martha é convidada por Deus a escolher uma coisa para se fazer no mundo. Um desejo, uma escolha e uma mudança. A personagem, uma mulher pobre e negra como Octavia E. Butler precisa encarar os sonhos de sua utopia quando vê no horizonte a possibilidade de realiza-la. É bastante interessante perceber o jogo que Butler faz ao tirar poder de sua personagem justamente no momento em que ela recebe o poder. Quando ela fica forte, ao mesmo tempo, fica fraca. Quando se pode resolver, os problemas ficam infinitos.
No fim, podemos dizer que “Filhos de sangue e outras histórias” nos ensina que ficção científica é sobre outro mundo mas, às vezes, é só o nosso mundo levado à milésima potência. Um mundo que precisa ser reinventado a todo instante para parar de repetir as violências que comete durante séculos. A saída está no futuro? Então precisamos inventá-lo agora aqui no presente.
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