Autora: Anne Frank
Ilustrações: Mirella Spinelli
Editora: Nemo, 2017
Páginas: 96
Pensamento é linguagem. Palavra e imagem. Jogo, batalha, entre palavra e imagem. Síntese e choque, dialética e simultaneidade. Pensamento é soco. Assim, toda violência, toda guerra, todo horror, antes de se dar na matéria, na realidade, é imagem, é fluxo de imagens em crise, é batalha para ver quem detém a imagem. Os horrores do Holocausto, até hoje, estão no centro das piores imagens já produzidas pela humanidade e suas histórias não param de produzir imagens. Entretanto, esta produção de imagens não se dá apenas com imagens da história. Existem os relatos mínimos, histórias individuais, pequenas faces dos crimes e horrores. O Diário de Anne Frank em Quadrinhos é mais um exemplo de como estas imagens se produzem e são produzidas.
O Diário de Anne Frank em Quadrinhos, por Mirella Spinelli, é a adaptação em HQ do célebre livro O Diário de Anne Frank, obra biográfica de uma menina judia de 13 anos que passou o final da sua infância e o começo de sua adolescência escondida em um pequeno apartamento da Holanda por conta da invasão do exército nazista de Hitler. A obra conta dos desejos de liberdade da autora, assim como da história de uma vida pormenorizada do horror que, dentro do apartamento, Anne só podia saber aos fragmentos.
A ideia de transformar um clássico desses em quadrinhos, me parece logo de cara conter um impasse: como ser a imagem de Anne Frank e como recompor uma realidade que se mostra tão íntima, tão pessoal, ou seja, em formato de diário? Como montar uma casa a partir de um diário, uma vida coletiva de famílias fugidas, apenas através deste livro de memórias? Neste sentido, a adaptação de Spinelli busca, ao mesmo tempo em que transforma em imagens o diário, inventar imagens apenas sugeridas na obra original e que, provavelmente não puderam ser vistas por Anne como uma cidade ocupada, um filme de cinema e filas e filas do exército nazista.
Assim, a obra se compõe na tessitura dupla entre a intimidade de Anne e uma vida pública massacrada, que se esconde do lado de fora da porta com os relatos que chegavam por vestígios, restos fracionados, junto com os alimentos que sustentam as famílias que ali se refugiam. O mais interessante, creio eu, é a forma como Spinelli consegue, a partir da transformação da paleta de cores, transmitir estes espaços diversos, construindo campos imaginativos diversos que desdobram o relato único em narrativas múltiplas.
O que mais se destaca, pelo menos para mim, é como a vida, ou seja, a força que surge de dentro das pessoas, floresce mesmo nos lugares mais inóspitos. Anne, como toda menina da idade, passa por todas as fases da adolescência: o conhecimento do corpo, os primeiros sentimentos, o surgimento do amor, o primeiro beijo, entre outros. O que fica, me parece, é que a esperança, como diz Drummond, pode realmente nascer, como uma flor no asfalto.
As ilustrações, embora não busquem um caráter propriamente autoral, conseguem uma tradução dos espaços e pessoas da época, mantendo uma necessidade de realismo que o tema requer. A escolha dos momentos para adaptação foram precisas e, como no livro, nos deixa em suspenso em relação dos destinos das personagens, afinal, um diário só pode sobreviver quando se conta, apesar de, ao final, nos apresentar uma pequena biografia futura daquelas pessoas. O Diário de Anne Frank em Quadrinhos é uma incrível adaptação que pode servir a diversos públicos, principalmente aquele interessado ou em adentrar o universo de Anne Frank, como aquele que busca uma outra visão da narrativa da jovem menina.