80 anos da morte de Fernando Pessoa. E o poeta não se foi sozinho, com ele se foram muitos: em seu arquivo, ainda sendo escavado, já foram encontrados 127 heterônimos no total. A morte de Pessoa, então, é quase um genocídio. O maior poeta português de todos os tempos (que me perdoe Camões) e o melhor da língua portuguesa (que me perdoem os brasileiros), Pessoa consegue ser moderno e afetivo, entender as máquinas e os campos, o amor e a dor de existir.
Ao contrário do que se acha, os heterônimos não serviam para que Fernando Pessoa habitasse o mundo de outros. Ele não tinha a intenção de “ser outro”, pelo contrário, a maior intenção de Pessoa era, no fundo, apagar-se, tanto que não assinava seus poemas quando não eram de heterônimos. O balanço final é: o Pessoa quase não existe, os heterônimos, existem demais.
O NotaTerapia, como homenagem aos 80 anos de morte, resolveu listar 6 poemas de heterônimos quase desconhecidos de Pessoa. Confira:
1- António Mora
Uma coisa queremos
Outra coisa fazemos.
Quem quer somos nós sós
Quem faz não somos nós.
Quem somos tem o intuito
Quem não somos o fruto
Alheio à intenção.
Todos não são quem são.
Uma coisa é a verdade,
Outra a realidade.
O que existe não tem
Que ver com haver alguém.
Alheio a nós o mundo,
Num sentido profundo,
Por leis e reis se guia
Em que a nossa energia,
O nosso sentimento,
O nosso pensamento
São elementos falsos…
Assim, a pedra incerta
Que a criança irrequieta
Atira ao vácuo do ar
Vai às vezes parar
Onde magoa ou fere
Não o que a criança quer
Mas o que o Fado quis
Por isso a pedra infeliz
O Destino atirou,
Nunca quem a lançou.
Outros somos. Morremos
A vida que vivemos.
Quem é nós não é nada.
Passa quem és na estrada
Da nossa consciência.
Para isto não há ciência.
2- Carlos Otto
EPIGR[AMA]
A um entendedor…
Um dia, tendo comichões
De nos fazer maior partida
A Asneira fez as religiões.
Tempos depois, estando de vê-las
Um tanto ou quanto aborrecida,
A Asneira pôs-se a desfazê-las.
3- Coelho Pacheco
PARA ALÉM DOUTRO OCEANO
(trecho)
Num sentimento de febre de ser para além doutro oceano
Houve posições dum viver mais claro e mais límpido
E aparências duma cidade de seres
Não irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em
pureza e em nudez
Fui pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo de os ter
A noção das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro
Todos viviam na vida dos restantes
E a maneira de sentir estava no modo de se viver
Mas a forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho
A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser
E houve pasmos de toda a realidade ser só isto
Mas a vida era a vida e só era a vida
O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente
Com a mesma doçura duma máquina untada que se move sem fazer barulho
Sinto-me bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel
Para não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo
Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento é claro
Mas eu não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho
Como uma máquina untada movida por uma correia
E não posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que trabalham
Eu lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem sentir isto como eu
Mas dizem que lhes doi a cabeça ou sentem tonturas
Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer
Como por exemplo a de que eles n„o sentem esse deslizar
E não pensam em que o não sentem
Leia o poema completo AQUI!
4- Joaquim Moura Costa
Vejo que rimas sem custo
E que o verso que te sai justo
Sem confusão se interpreta.
P’ra seres poeta, Augusto,
Só te falta ser poeta.
5- Pantaleão
E para mim, idealista integral, o próprio mundo, o universo inteiro, não é senão um boato e um boato falso.
……
A vida, toda a vida, é o eterno boato, e a morte, toda a morte, o eterno desmentido. Esperança, amor, ilusão, a crença ansiada no futuro, a confiança trémula no presente, tudo isto cessa nos seus objectos e em si. Passar é desmentir-se. Não há mais para mim do que a superfície das coisas – essa superfície forja-se nas realidades.
……
Todos os caminhos do pensamento levam àquela Roma da dor, cujo supremo pontífice não dá audiências ao raciocínio, nem bulas ao sentimento.
……
A mim é-me familiar o que a outros, e a raros outros, apenas em horrorosos acasos é de algum modo vagamente experiência – o sentimento do mistério e do horror intelectual do mundo. É minha inimiga do meu sangue e na minha alma quotidiana a sensação ôca de que o universo é uma pavorosa ilusão. Passou já o tempo em que este medo me era ocasional e, como um relâmpago, uma coisa de um horroroso instante. Hoje consubstancia-se com a minha vida espiritual ao ponto de me parecer estranha e não de mim a hora do espírito em que de algum modo me desenvencilho da consciência do mistério do mundo.
6 – Vicente Guedes
NUNC EST BIBENDUM
Quando o Tédio, invencível e infecundo,
Nos faz sentir a solidão de ser,
E uma monotonia ocupa o mundo,
Que mais tem o espírito a fazer
Do que ensinar ao corpo que o profundo
Desgosto da existência lhe requere
Que veja sempre ao cálix o seu fundo
E sempre tome o cálix a encher?
Assim a nós os pensadores mortos
Para o prazer e a quem a saciedade
Na própria ideia já nos dissuade,
Se não beber até que a vida esqueça
Aos nossos olhos sem pensar absortos
O sonho que é, o mundo em fim pareça.
Fonte: Todos os poemas foram retirados do site oficial Arquivo Pessoa: http://arquivopessoa.net/