“Dança de Samambaias” é uma coletânea de cerca de 50 poemas da escritora mineira Girlene Verly. Conheça!
O filósofo Alain Badiou possui um texto belíssimo chamado “A dança como metáfora do pensamento” em que ele tenta desfazer a lógica de que dançar é dar voz a um corpo que não pensa. Quase que dando forma à metáfora de Milan Kundera em “A Insustentável Leveza do Ser”, Badiou acredita que a dança possui uma ambivalência que é a necessidade de uma imensa força para demonstrar a total leveza.
Ela é bela porque parece pluma, apesar do esforço descomunal da bailarina. Por isso, Badiou considera que a dança é, ainda, anterior ao corpo, uma espécie de corpo antes do corpo – devir-corpo – que, por se tornar pensamento, age no segundo anterior ao que o corpo começa a dançar.
Dizendo de outra forma, para ele “a dança sinaliza o pensamento como acontecimento. […] Um acontecimento é precisamente o que permanece indecidido entre o ter-lugar e o não-lugar, um surgir que é indiscernível de seu desaparecer”. Parto deste pensamento de Badiou para falar do belíssimo livro de poesia “Dança de Samambaias”, de Girlene Verly.
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“Dança de Samambaias” é uma coletânea de cerca de 50 poemas da escritora mineira Girlene Verly. Formada em dançaterapia, graduada e mestre em Letras pela UFSJ e doutora em Literatura Comparada pela UFMG, a autora faz uso, tal como Badiou, da dança como metáfora do entendimento do mundo, do corpo, das gentes, tanto no que se refere aos indivíduos quanto às coletividades.
Gosto de dizer que a diferença entre as artes não são muito claras, assim, temos livros que são verdadeiros filmes em nossas cabeças, tal como determinados filmes são verdadeiras obras literárias. No caso de “Dança de Samambaias”, ao que parece, estamos diante realmente de uma espécie de ballet, tanto que a autora, sutilmente, divide o livro em 4 pequenos blocos, tal como o famoso Lago dos Cisnes. Porém, também podemos ver essas divisões como atos de uma grande ópera ou, em última instância, pequenas árias em que Girlene sola diante da orquestra das palavras do mundo.
A primeira coisa que se destaca no livro são os poemas que fazem referências a outros nomes de grandes nomes das artes, como se a autora estivesse quase que literalmente chamando outros autores para dançar através da linguagem. Logo no primeiro poema, Maestria, Girlene traz o pensamento de que “ausente do título / de arte / a dança já inspirava / os corpos”, convocando assim a liberdade artística de três mulheres que dedicaram suas vidas à arte da dança: Martha Graham, Isadora Duncan e, a mais famosa de todas, Pina Bausch.
Porém, as referências às artes não ficam na dança, também convocam à poesia. Tanto Rimbaud cujas “vogais coloridas (…) / dançam / por entre as linhas / do seu pensamento”, quanto Leminski cujo texto “tão concreto como um sonho / tão central / quanto marginal” permite ao corpo rabiscar, rascunhar e rasurar formando o que seria uma Odisseia, obra seminal de Homero.
E as citações vão se avolumando neste baile em que Girlene dança com todos: Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Chopin, Santo Agostinho, Paulinho da Viola…entre outros.
Outra característica muito importante de “Dança de Samambaias” é o desenho estético trabalhado por Girlene. Sem se contentar com as formas tradicionais da poesia, ela se exprime através de uma série de jogos formais que vão desde as rimas brancas, ritmadas, até ao flerte com a literatura concreta. Porém, ao contrário do concretismo que via na poesia um material “verbivocovisual”, no caso da autora a poesia é um exercício de movimento, de fazer a palavra sacudir-se.
Conheça O CORPO SABE QUE É TERÇA, MAS SE DISTRAI, outro livro de Girlene Verdy
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Na segunda “ària” da obra, Girlene remonta aos “Primórdios” e nota que, antes de formarmos a linguagem, os gestos e os movimentos dos corpos eram a forma primordial de comunicação. E que esta forma mais “primitiva” de falar com o corpo pode ser vista na recuperação de um “movimento animal” da dança. Diz ela:
“simulo o ir e o vir
giro e ensaio
um rugido
treino a ponta
plantas do pé
atentas
experimento as garras
um bote
sinto-me viva
vejo-me morte”
A dança, neste momento, é de certa forma, a composição própria do corpo num ato sem palavras, um “corpo-eixo”, feito de “encaixe e desencaixe”, entre o movimento e o artefato. Corpo-repositório, corpo-matéria-prima. Livre porque pode, ainda, tudo.
Destaco deste ponto, um dos meus poemas preferidos do livro, “Improviso” que, com pouquíssimas palavras, nos mostra a dança também no lugar de um corpo que não pensa, mas sabe, que vê a dança também como uma poesia que é feita enquanto é feita, que se inscreve no corpo enquanto o corpo baila, para além das coreografias, como diz Badiou…um corpo antes do corpo. O poema diz assim:
danço
simplesmente
porque existo
e quando existo
não sou eco
nasci para ser
rio…
em curso
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De certa maneira, este poema me fez ler a poesia de Girlene de outro lugar: agora, ao invés de procurar apenas movimentos, passei a entender sua escrita também como um “curso”, ou seja, como velocidade, como se a poesia estivesse não em uma palavra ou na próxima, mas no seu fluxo, tal como se estivéssemos diante de um “dromopoema”, uma poesia que corre.
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E tanto isso é verdade que, acredito, a autora escreveu em “Cara e Coragem” aquilo que parece ser a síntese do que significa poesia e dança para ela:
“a dança não lava nem cozinha
não cura o medo da vida
não esconde o meu passadoa dança não se come
não se veste
não é produto de belezanão paga as contas
não é marido
nem antidepressivoa dança é só dança mesmo
e também não é”
Veja, “a dança é só dança mesmo / e também não é”. O que ela poderia estar nos dizendo com esses versos? Ora, trata-se de uma poesia toda escrita através de um pensamento “negativo”, ou seja, a dança para ela é tudo aquilo que não é. E aí é ambíguo: dança é tudo aquilo que não é dança, sim, mas também é tudo aquilo que não é NADA. Aquilo que não tem marca, nem identidade. Pense em algo: a dança não é isso. Eis a definição de dança para Girlene.
Por fim, podemos dizer que “Dança de Samambaias”, de Girlene Verly, materializa o efeito que a dança tem em todos nós: uma filosofia do corpo, uma filosofia que não se dá pela estrutura aristotélica-cartesiana, mas que pensa por saltos, piruetas, movimentos, corridas, peso e leveza, força e plumas. A dança como metáfora da poesia e a poesia como metáfora da dança, esse livro não é livro, é mais que isso, é tal como sair na chuva para dançar. Molha, passa, fica e muda a gente.
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