Resenha de “Terrorista Doces”, de V. Tavares
O poeta Charles Baudelaire cunhou os passantes da cidade de Paris de “flâneurs”. A ideia era capturar uma nova existência que surgia com a cidade moderna que crescia de forma cada vez mais desordenada: aquele que caminha, errante, vadio, para observar as gentes, as ruas e as pessoas.
O flâneur seria aquele que, ao contrário da cartografia oficial do mundo, escapa do modo capitalista da modernidade que mapeia e monetiza os lugares para os quais vamos circular: a casa, o trabalho, a igreja e um ou outro lazer.
Assim, o flâneur seria uma figura revolucionária que olha e mostra, guarda, anota e espalha essa sua vivência para cada lugar que vai. O filósofo Walter Benjamin, por exemplo, faz uma oposição entre o flâneur e o mero transeunte. A proposta dele é que o transeunte é aquele que se mistura à multidão enquanto que a flânerie seria aquela que, uma vez dentro, permanece sempre do lado de fora.
Eu acreditava, com certa ingenuidade, que na passagem da cidade moderna para a cidade contemporânea, a figura do flâneur sucumbiria pois seria solapada pelo caos, pela violência, pelo barulho, fumaça e desordenamento básico para qualquer existência. Porém, estive enganado por anos até encontrar o livro de V. Tavares: O Terrorista Doces.
O Terrorista Doces, de V. Tavares, é um romance verborrágico, narrado em primeira pessoa, que retrata o cotidiano de um motorista de aplicativos. Ao sair todos os dias para trabalhar, este sujeito se vê atravessado a todo instante pela cidade e, diante desses atravessamentos, tem uma série de diálogos entrecortados com passageiros que se tornam também espaços para reflexões interiores a respeito de diversos temas contemporâneos.
O autor fala do livro como “uma corrida pela tormenta do contemporâneo, através da cidade e do trânsito, contra as expectativas, e apesar dos homens.” Acredito que é isso, mas também mais: é que, embora a cartografia da cidade seja toda mapeada pelos gps dos aplicativos, cujas rotas são dadas de antemão, ao trabalhar como motorista neste modelo, o que se incorpora é uma lógica de uma cidade cambiante, vertiginosa e aleatória.
De certa maneira, podemos dizer que esta personagem que pensa e fala, que interage e mergulha dentro de si, está submetida, ao mesmo tempo, à lógica do controle e da aleatoriedade. Controle porque cada quilômetro andado está monetizado pelo aplicativo que lhe dá ou tira dinheiro. Aleatório porque, ao sair de casa, o motorista não pode jamais prever que rotas seguirá ou que passageiros vão entrar por seu carro.
Assim, todos os seus pensamentos, reflexões e ações, não estão mais condicionados pela própria vontade, desejo ou racionalidade, mas pela lógica randômica dos passageiros que o aplicativo escolhe para ele transportar. Em determinado momento, o autor reflete sobre a própria tarefa de ser motorista:
“Não se pode medir o tamanho das coisas só pelo espaço que elas ocupam, nem sua importância só pela posição. Nessa cidade, por exemplo, a profissão de motorista é vital. Não se pode medir sua importância pelo salário. Assim, como professoras, antropólogos e avós: são em geral bastante mal remunerados, e assim assim, eles são essenciais”
Como um flâneur contemporâneo, um ser errante por excelência, mas também pelos algoritmos, este personagem se torna reflexivo e verborrágico porque absorve a própria lógica da cidade de nossos tempos. Ainda, incorpora uma estrutura formal desta cidade que é a dos fluxos interrompidos, dos sinais de trânsito, das entradas e saídas, dos barulhos, das pessoas que moram na rua, daqueles que vendem coisas nos sinais. Tudo isso é matéria prima e, ao mesmo tempo, freios nas reflexões, interrupções, mudanças de fluxo, ritmo.
E este é o ponto alto da narrativa de V. Tavares: incorporar formalmente este espaço urbano formado por artérias e veias que cruzam umas com as outras sem que se possa, em nenhum instante, colocar uma ordem, dar um prumo. Não há tempo de organizar ou que nem sequer se pode ver os contornos. E reduplicando essa ambivalência urbana, o autor escreve uma obra incessante, ininterrupta que, apesar de possuir capítulos, tem algo dos romances de Saramago: as páginas cheias de cima a baixo e presença marcante da voz do narrador no uso da pena.
Não podemos esquecer que, como pano de fundo, temos a figura que dá título ao livro, o Terrorista Doces. Durante grande parte do livro, este nome é apenas mencionado, com poucas características marcantes e só alguns contornos traçados, até que descobrimos que se trata de um dos mais prolíficos tipos terroristas da sociedade contemporânea, mas mais talvez não devamos falar para não estragar sua leitura já que ele é essencial para o desfecho do livro.
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Podemos falar também de algumas das histórias que o personagem do livro passa e que valem a pena serem lembradas: a minha preferida é quando, de um segundo para o outro, o homem se vê em meio a uma briga de casal que escalona para a violência. Atormentado, ele fica entre a ação de interromper e a inação de observar tudo, porém, ao tentar intervir acaba sofrendo consequências graves que o levam ele a andar armado.
Outro momento, é a presença dele durante a enchente no lugar onde mora. Ao lado de duas mulheres que vivem com ele, e foram resgatadas numa tragédia, o homem ajuda a retirar entulhos e pessoas dos escombros após um deslizamento de terra. Após esse período, ele passa a trabalhar ativamente para a construção de uma horta com comida orgânica para as escolas e creches locais e um pequeno campinho de futebol para a criançada jogar bola.
Lendo isto, você deve pensar que este sujeito é um cara bom, ético e moral. Bom, sim e não, quase sempre, mas nem sempre. Como um iconoclasta das ideias, ele é atravessado por todas sem conseguir incorporar nenhuma. Ele flana pela filosofia, pela antropologia e mergulha num caos antropofágico em que todas as ideias, até as piores, são igualmente válidas diante do éter universal de pensamentos.
Em um mundo cada vez mais acelerado, esse sujeito é o contemporâneo por natureza: livre e explorado, absolutamente dono do seu destino, mas capacho da necessidade de sobrevivência em um mundo de desigualdade. Ele vive como todos nós, entre o medo e a vertigem, a coragem e o desespero, tal como pensou Caetano Veloso em Americanos:
“E dançamos com uma graça cujo segredo
Nem eu mesmo sei
Entre a delícia e a desgraça
Entre o monstruoso e o sublime”
O Terrorista Doces é uma obra pujante, grave, até exaustiva para quem lê, mas um belo tratado do que é o nosso mundo cada vez mais mundo e cada vez menos nosso. Espero que se divirta ao conhecê-lo!
Quem é V. Tavares?
V. Tavares nasceu em 1986. Desde cedo entusiasmou-se pela contação de histórias de seus pais, e mais tarde na literatura pelos mestres da escola pública, em cujas bibliotecas sempre passava mais tempo do que era permitido, e publica agora este seu primeiro romance.
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