Memória e esquecimento. Um pêndulo da existência que não se pode sequer ser materializado, afinal, sabemos hoje que lembrar é esquecer e esquecer é lembrar. Cabe-nos, então, a pergunta “como se lembra? como se esquece?” Quase sempre aos solavancos, por alguns quebra-molas de dor. Para falar de No dia em que não fui, de Andressa Arce, estaremos o tempo todo nos alternando entre a tarefa de lembrar e esquecer, num exercício que Gabrielle Estevans chamou de “esburacamentos”. Talvez seja mais ou menos por aí.

Em No dia em que não fui, livro de estreia de Andressa Arce, defensora pública e Mestre em Direito pela Federal do Mato Grosso do Sul, adentramos na história de duas irmãs. Na verdade, duas meia-irmãs que, por dividirem o mesmo pai que, por sua vez, dividia duas famílias, acabam se conhecendo não pelo convívio, mas por alguns encontros esporádicos realizados por esse pai.
Uma delas é Alice, a irmã mais nova que atravessa a infância se imaginando como a irmã mais velha. A outra, Liana, jovem doce e gentil, mas cuja vida desregrada a leva à uma história que se poderia comparar ao clássico “Eu Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída”. Estamos ali em meados dos anos 90, e Liana mostra à Alice músicas de Madonna, Michael Jackson e, mais que isso, deixa nela a marca de uma juventude possível. Uma referência de uma vida pulsante, mas que se queima pelos dois lados da vela.
No entanto, em um dia como qualquer outro, chega a notícia de que Liana havia cometido suicídio após algumas tentativas frustradas anteriores. “Como deve ter doído ter um segredo revelado assim. Tentar matar-se é algo muito íntimo”, se assombra Alice, diante dessa perda.
A partir de então, Alice adentra a adolescência e a vida adulta em um caminho complexo entre a autodestruição, através de uma anorexia nervosa, e o espelhamento da vida de sua irmã que ocupa, habita e forma seu imaginário. Diante das dores dessa perda, Alice começa a compreender como o seu caminho se entrelaça ao da irmã e tenta se reencontrar com seu passado através de algumas cartas que escreve para ela, cartas que nunca serão entregues.
Em uma escrita breve, que poderia ser vista entre a novela e o romance, Andressa Arce é atenta para que temas tão difíceis de serem abordados sejam tratados com o cuidado necessário. A divisão de capítulos por si só já parece compor uma gesto poético que passa ao largo do romance, sendo o primeiro chamado “A meia-irmã da filha única”, o segundo “A filha única sem meia irmã”, e o último “o punho, ainda”. Presença, ausência, dor.
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Como todo suicídio é um silêncio, uma caixa hermética do qual emergem diversas tentativas de explicações e significados que não existem, Alice encontra duas possibilidades de se haver com esta história, dois momentos que são retratados nos segundos e terceiros capítulos: a dor da recuperação e um reeencontro possível. Ao ver a irmã como uma potência de vida, e não de morte, como aquela que lhe atribui sentido às coisas mais corriqueiras da vida, como a ida a um parque ou ouvir música, Alice – agora só – expia em seu corpo a culpa por perder a irmã e, por fim, resolve direcionar a ela suas angústias e reflexões.
Em termos de linguagem, é particularmente interessante que Andressa opte por escrever através de metamorfoses dos gêneros dentro do romance, optando em alguns momentos pela narrativa direta, em outras pela narração de Alice em primeira pessoa e, por fim, com o uso das cartas. Além disso, dentro dessa versatilidade, cabem letras de músicas e também pequenos poemas, um em especial dá título ao romance e é pessoal demais para não ter sido de inspiração verdadeira. Quem sabe, a literatura é boa nessa tarefa de emular:
No dia em que não fui,
calaram-se os brotos das batatas sujas de terra e o amarelo das folhas mortas.
No dia em que não fui,
zuniram as frutas moridas sob uma mantilha negra de moscas.
(…)
No dia em que não fui,
escorreu-me a irmã pelos dedos.
No dia em que não fui,
Fiquei.
A linguagem de Andressa Arce é ambivalente, na medida em que tudo soa simultaneamente poético e árido. As descrições são pouco adjetivadas, de modo que estamos diante de uma escrita que é construída muito através de uma visualidade, como quando, por exemplo, ela se apaixona por um rapaz, “neto do poeta”:

“Pulei de ponta e mergulhei de olhos abertos no fundo de sua pedagogia, debruçando-me sobre restos, pássaros, musgos e insetos”.
Note que toda frase nos remete a essa sensação de abismo em que Alice se perde ao cair nas teias do jovem. No entanto, sua descrição não é através de sensações ou de adjetivos, mas dessa matéria bruta de “pássaros, musgos e insetos”, ou seja, um abismo que podemos ver.
Por falar em abismo, Alice mergulha em mais um deles ao se ver internada numa clínica para combater sua anorexia. Da rejeição a comida à perda da capacidade de se reconhecer no espelho, é diante de outros internados como ela que a personagem aprende a tatear o abismo, num gesto que me remeteu simultaneamente a três outras figuras de nossa literatura brasileira: Olga, do romance pouco conhecido do piauiense Assis Brasil: O Aprendizado da Morte; Veronika, do best-seller brasileiro de Paulo Coelho: Veronika Decide Morrer; e Lori, personagem principal do clássico de Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres.
Essas figuras, de alguma forma, flertam com abismos: os próprios, os do mundo e os do outro e buscam se reconectar com alguma coisa primordial que se perdeu em sua trajetória. Além disso, todas são atravessadas pela questão de gênero, quatro mulheres que buscam se encontrar enquanto encontram as barreiras deste mundo.
No caso de Alice, o que ela descobre é que por mais fundo que ela fosse, em algum momento haveria um ponto de não retorno:
“Descobrir a existência do ponto de não retorno é ter em si o assombro de que sempre se está a beira de.”
Mas a beira de que? Este é o assombro, não sabemos. No caso de Alice, Andressa vai tecer suas dobras nas combinações entre o afeto da mãe, as consultas médicas e “seu gradual retorno à alimentação: primeiro o café, depois o arroz, sem feijão, encarando: “o prazer de ser cada vez menor carne, cada vez menos” com a certeza de que chegava em um ponto em que seus próprios ossos lhe perfuravam. Afinal, a derrota da anorexia era também uma derrota de si própria.

Ao encontrar sua linha de fuga, as cartas enviadas para a irmã morta, Alice também reencontra seu caminho com a vida trazendo consigo também outras obras de arte que compartilha com a irmã. Ao descobrir que “a felicidade quase sempre é horizonte”, Andressa coletiviza o gesto de Alice ao vê-la projetada em outros personagens como o filme Io e te de Bernardo Bertolucci, o romance Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles, a música Ragazzo solo, ragazza sola, de David Bowie e até um documentário sobre a coreógrafa Pina Bausch: Un jour Pina a demandé.
No fim, a descoberta de que a vida SEM a irmã é também a vida COM a irmã porque tudo que ela havia deixado era este rastro de vida, um rastro de memória e apagamento, de referências artísticas que soariam na cabeça de Alice como manuais para viver, mas principalmente um traço de amor, ainda que pequeno pelas circunstâncias da vida. Um amor que, do jeito que pôde ser, se expressou na máxima frágil que se apresenta como uma tradução do que é a vida:
“Amar é o caminho;
às vezes, tudo o que se pode enxergar é a neblina.”
Pois assim, No dia em que eu não fui, de Andressa Arce, é um romance singelo sobre descobrir, mais do que isso, sobre precisar descobrir, talvez, como a única forma de sobrevivência. E, ao descobrir, lembrar, e nesta lembrança, para fora, viver.
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