Reler um livro é como visitar uma cidade que a gente gosta. Já não interessa mais a meia dúzia de pontos turísticos, as fotos instagramáveis, o passeio rápido no ônibus de turismo. Na releitura, passa-se a explorar os detalhes íntimos, os segredos que os locais compartilham apenas entre eles, as sensações mais delicadas provocadas por determinada paisagem. Foi com esse espírito que reli Copo Vazio, livro publicado em 2021 pela escritora Natalia Timerman.
O contexto de Copo Vazio
O motivo da releitura foi o de me preparar para uma conversa sobre o livro em um clube de leitura formado por mulheres. Por mais que o ghosting, motivo central do livro, seja um fenômeno social da contemporaneidade, o livro impacta, sobretudo, as narrativas femininas. Em algum canto empoeirado do passado (ou do presente), mulheres se reconhecem ou lembram de uma situação (ou muitas) em que levaram um “perdido” de um potencial amante ou amor. Se não elas, uma amiga, a irmã, a vizinha.
Aquela história batida em que um dos lados da relação ama menos e vai embora reverbera ainda mais em tempos em que não se tem “referência” de quem é o parceiro ou parceira. Não é um colega de trabalho, a filha da amiga da tia, o parceiro de futebol de domingo do irmão. Agora é alguém encontrado nas redes sociais e nos aplicativos de relacionamento. A paixão pode morar em um bairro que você nunca pisou os pés, ter passado a vida em outra cidade, ser de uma profissão totalmente estranha ao seu dia a dia.
Sobre Copo Vazio

Natalia é precisa ao contar as agruras de quem sofre pela perda de alguém que some por legítima vontade, sem deixar indícios, rastros ou explicações. O relacionamento de três meses com Pedro deixa marcas profundas em Mirela, o que a faz se questionar sobre o que fez, interpretou, idealizou. Ainda que compreenda a racionalidade de quem vê seu sofrimento, “eles tem pena da minha esperança”, a personagem se nutre justamente do sentimento de que um dia voltarão a estar juntos. Mirela é bonita, bem-sucedida profissionalmente, interessante, mora em um bairro bacanudo. Apesar de todos esses predicados ou justamente por eles, sofre ainda mais: “se eu sou tão foda quanto falam porque um cara que nem o Pedro, inseguro, travado, desaparece?”
De Pedro, sabemos pouco, ainda que ele seja o centro do amor e da dor de Mirela. Não chegamos a compreender os motivos do seu afastamento, se chegou a se apaixonar por Mirela ou se emendou em outro relacionamento após o término. O que se conhece é a versão da perda de Mirela e o que isso provoca em sua vida.
As escolhas narrativas em Copo Vazio
O romance é narrado na 3ª pessoa do ponto de vista de Mirela. Chegamos a compreender os sentimentos da personagem, as suposições que faz a respeito do sumiço de Pedro e as paranoias que cria em torno desse relacionamento que não vingou. No entanto, em momentos pontuais, a autora inova ao introduzir formas narrativas que iluminam outras facetas da trama.
Como quando coloca a troca de mensagens entre os dois personagens em um dos raros momentos em que Pedro se mostra acessível pela internet. Ali é como se tivéssemos provas de que houve mesmo algo entre os dois e, ao mesmo tempo, notamos o desequilíbrio entre o que foi essa história para Mirela e para Pedro. Mirela recorre à música (“Escutando You don’t know me, impossível não lembrar de você”) e à literatura (“Saga é um conto dos mais lindos que já li, vc tem que ler”) para declarar o quanto continua imersa na história.
Já Pedro dá respostas esquivas e de conotação sexual (“Beijos em você também. Onde você quiser.”) Essas mensagens revelam não apenas a distância emocional entre os dois, mas reforçam o quanto Pedro, indiferente, escapa do afeto e apego que consomem Mirela.
Em outro capítulo, Natália Timerman recorre à 1ª pessoa para reproduzir uma das sessões de terapia que Mirela participa. Nesse texto corrido, sem pausas para parágrafos, Mirela vai além do abandono e fala da hipocrisia de uma sociedade que espera que as mulheres estejam acompanhadas para terem “um passaporte pra felicidade ou pelo menos pra visibilidade” e as culpam quando não superam um término. Nessa conversa, Mirela tenta elaborar seus sentimentos e verbalizar em linguagem o que a aflige de forma ainda mais pulsante.
Abandono, luto e vazio
Na releitura de Copo Vazio, não só apurei minhas percepções sobre as nuances possíveis de amor, como fiquei ainda mais impressionada com a escrita da autora. Natália Timerman é ágil nos turbilhões emocionais, sensível para dizer sem contar, poética no destrinchar dos sentimentos.
Ao ler as páginas de Copo Vazio, é como se estivéssemos percorrendo com a personagem o árduo caminho do luto. Ainda que o gatilho para essa dor possa ser incompreendido, a dor de Mirela é real. Ela a consome, prejudica seu trabalho, faz seus relacionamentos posteriores se tornarem insossos.
No entanto, com o passar do tempo, ao esquecer das feições de Pedro e se dar conta de suas falhas, é como se o vazio da perda fosse a própria razão de existência de Mirela. O “copo vazio” se mantém vazio, ainda que seja preenchido de um encontro fortuito com Pedro, um casamento com outro homem, a maternidade. Mirela se convence de que os abandonos são a tônica da vida e se fecha para a sua versão comedida e possível de felicidade.
Como numa cidade cujas esquinas revisitamos para ver o que sempre esteve ali, mas não havíamos reparado, Copo Vazio não apenas relembra o peso do abandono, mas também nos desafia a encarar nossos próprios vazios – esses que, talvez, façam parte do que somos.
Sobre a autora

Natalia Timerman nasceu em 1981, em São Paulo. É médica psiquiatra pela Unifesp, mestre em psicologia e doutoranda em literatura pela USP. Publicou DESTERROS: HISTÓRIAS DE UM HOSPITAL-PRISÃO (Elefante, 2017) e a coletânea de contos RACHADURAS (Quelônio, 2019), finalista do prêmio Jabuti. Publicou COPO VAZIO e AS PEQUENAS CHANCES pela Todavia.