A estudante palestina Raghad Loai Mhanna aparece no vídeo com uma beca preta, um capelo improvisado e os olhos grudados na tela do notebook. Quando o resultado finalmente aparece, ela salta. Ri, grita, chora. Está cercada de crianças e adolescentes, possivelmente familiares, que aplaudem e a abraçam. Nada nessa imagem sugere um genocídio.
Mas ele está em todo lugar: no teto rasgado de uma tenda, no pó das roupas, na ausência da mãe, na ausência de tudo. Raghad é uma estudante palestina, se formando em meio ao geonocídio perpertrado pelo movimento sionista israelense durante mais de dois anos na faixa de Gaza. Raghad tirou 85% nos exames finais do ensino médio – feitos à luz de lanterna, entre tarefas domésticas e caminhadas longas até o reforço escolar mais próximo. A única coisa que ela teve à disposição foram livros. E, por isso mesmo, decidiu continuar.
“Eles tiraram minha casa, meus amigos, minha escola e meus professores. Eu não tinha mais nada além dos meus livros. Então continuei tentando estudar, porque é a única esperança durante a guerra”, disse ela em entrevista recente.
A Faixa de Gaza é hoje, mais do que nunca, um lugar onde sobreviver é uma tarefa diária. Mas tentar estudar em meio aos bombardeios constantes, aos apagões, à fome e aos deslocamentos forçados – no Instagram de Raghad, uma publicação documenta o que ela chamou de seu “terceiro êxodo” para Rafah, ainda no final de 2023 – e ao medo é outra coisa: não é apenas resistência. É uma forma desesperada de sustentar um futuro onde tudo ao redor parece ter sido apagado. Desde outubro de 2023, o sistema educacional do território deixou de funcionar, não por falha interna, mas por destruição sistemática.
O colapso da educação em Gaza
De acordo com números divulgados pela ONU, 625 mil estudantes palestinos estavam matriculados em Gaza antes do início do conflito em outubro de 2023. Em menos de um ano, o que se tem é um apagão quase total: 80% das escolas foram destruídas ou severamente danificadas. O Ministro da Educação da Palestina, Amjad Barham, declarou em agosto que Israel realizou uma “destruição sistemática” do setor educacional, com 293 das 307 escolas da região completamente inutilizadas – parcial ou totalmente.
Além da destruição física, há a paralisação do calendário escolar. Segundo dados do UNICEF e da UNESCO, desde outubro daquele ano, praticamente nenhuma escola da região conseguiu retomar as atividades de forma estável. Em parte porque não há salas de aula – muitas escolas foram transformadas em abrigos para famílias deslocadas. Outras foram simplesmente reduzidas a escombros.

A perda é material, sim, mas também simbólica. O apagamento da educação em Gaza, longe de ser um simples efeito colateral, é um golpe direto contra qualquer projeto de reconstrução nacional, qualquer noção de continuidade cultural, qualquer possibilidade de futuro. É parte ativa de um genocídio em andamento.
A ONU já classificou esse tipo de destruição como violação do direito internacional humanitário. Mas a denúncia, como tantas outras, parece ecoar no vazio.
Bombardeios direcionados e “erro de cálculo”
O caso da Universidade Islâmica de Gaza é emblemático. Fundada em 1978, era considerada a principal instituição de ensino superior da Faixa. Em outubro, bombardeios aéreos israelenses destruíram completamente o campus central. Vídeos mostram corredores reduzidos a pó, livros queimados, laboratórios de ciência completamente pulverizados. Em comunicado oficial, o exército israelense afirmou que o local era usado por grupos militantes. Nenhuma evidência foi apresentada.

Não foi a única. A Universidade Al-Azhar, também em Gaza, teve prédios administrativos e bibliotecas atingidos. Em Khan Younis, escolas da UNRWA (agência da ONU para refugiados palestinos) foram bombardeadas mesmo estando claramente sinalizadas. Israel alega, repetidamente, que militantes do Hamas se escondem nessas estruturas. Quando questionado por jornalistas da BBC sobre os ataques a escolas sem evidência clara de uso militar, um porta-voz das Forças de Defesa de Israel limitou-se a dizer que “nenhuma decisão é tomada sem avaliação estratégica”.

A questão é: mesmo que houvesse milícia em prédios escolares – o que, em muitos casos, não se confirma —, o que justifica a destruição irrestrita de quase todas as escolas do território?
Segundo análise da organização Human Rights Watch, baseada em imagens de satélite e depoimentos locais, muitos ataques não possuíam qualquer justificativa estratégica. “Os alvos foram centros de ensino, não bases militares. E o padrão é claro demais para ser ignorado”, diz um trecho do relatório publicado em junho de 2024.
O que se perde quando uma escola desaparece
No campo de refugiados de Jabalia, onde a destruição foi quase total, crianças continuam se reunindo em torno de professores voluntários. Os quadros são pedaços de papelão, as carteiras foram substituídas por pedras. A tentativa de manter alguma rotina de aprendizado, mesmo sem livros, cadernos ou segurança, é tanto um esforço pedagógico quanto um gesto de sobrevivência psicológica.

“Não estamos tentando preparar os alunos para vestibulares. Estamos tentando preservar o senso de que eles ainda são crianças, que ainda têm direito de aprender, mesmo aqui”, disse uma professora voluntária em entrevista à Al Jazeera. Ela pediu para não ser identificada.
A ONU alerta para os efeitos psicológicos da guerra em crianças – muitos já apresentam sinais de trauma severo, insônia, mutismo, enurese noturna. O ambiente escolar, mesmo precário, é uma tentativa de resgatar alguma normalidade. Mas há limites para isso. Quando se estuda entre destroços, a memória mais nítida não é a da lição dada, é a da sirene.

A guerra destrói escolas de várias formas. A primeira é direta: bombardeios, demolições, mísseis. A segunda é mais lenta: crianças e adolescentes que abandonam os estudos para ajudar em casa, para procurar comida, para fugir. A terceira, mais silenciosa, é a que transforma professores em alvo, livros em cinzas, salas em abrigos, e naturaliza esse processo como inevitável. É, de fato, inevitável aos olhos dos arquitetos dessa barbárie: o apagamento cultural de um povo é elemento fundamental para o sucesso de um processo de genocídio.
Quando estudar é um ato político
Em meio a esse cenário, o gesto de Raghad, além de comovente, é profundamente político. O vídeo de sua comemoração viralizou – mas o que ele revela vai além da imagem. É a lembrança de que educação é, em contextos de guerra, um campo de batalha, e que não há nada mais subversivo, às vezes, do que aprender. As bombas apagam escolas, mas a educação resiste.

Essa é a aposta feita todos os dias por centenas de jovens em Gaza que tentam, entre ruínas, manter cadernos secos, anotar fórmulas, decorar textos, passar em provas. A maioria não tem acesso a internet estável, eletricidade constante, ou bibliotecas. Muitas não têm casas. Comida. Ainda assim, escrevem.
“Querem que a gente pare de estudar porque sabem que é o estudo que nos faz continuar. Que nos dá esperança. E a esperança é o que eles não querem que a gente tenha”, disse Raghad em entrevista a uma rádio local.
Um futuro em ruínas?
A destruição sistemática da educação em Gaza não pode ser analisada isoladamente. Ela é parte de um processo mais amplo de desumanização. Não se bombardeia uma escola sem assumir que as crianças que estavam dentro dela não importam tanto quanto as que estariam, por exemplo, em Tel Aviv ou Haifa. A hierarquia das vidas se reflete também na hierarquia das instituições que as sustentam.

A educação em Gaza é um alvo. Seu colapso é parte do mesmo projeto que atrozmente massacra o sistema de saúde palestino e que assassina jornalistas em níveis sem qualquer precedente histórico. Israel elimina suas testemunhas: os profissionais de saúde que veem as barbaridades – um mês atrás, uma médica australiana relatou ter feito uma cesariana de emergência no cadáver de uma grávida decapitada, para citar um exemplo dentre centenas de milhares –, os jornalistas que as fotografam e que escrevem sobre elas, e as crianças que, recebendo a educação e as oportunidades adequadas, em alguns anos poderão fazer as próprias denúncias, e construir a memória, daquilo que viveram e da crueldade e violência às quais foram submetidas – exatamente como as crianças judias que sobreviveram fizeram pela memória do holocausto.
A educação não é neutra. Ela forma narrativas, pinta imagens, preserva cultura, constrói cidadania, permite que vozes sejam ouvidas. Apagá-la é tentar garantir que não haja amanhã para a Palestina, apenas escombros administráveis. Apagá-la é garantir que não haja lembrança, memória, história escrita ou oral. Mas, a julgar por Raghad, ainda há quem insista nesse amanhã. Com livros, com cadernos sujos, com celular de lanterna, dentro de tendas em campos de refugiados. Com um capelo improvisado e um grito de alegria no meio das bombas.
AJUDE RAGHAD A SE REUNIR COM SUA FAMÍLIA: A família de Raghad está arrecadando fundos para sair de Gaza e se refugiar na Bélgica, onde sua mãe já está. Doações para Raghad podem ser feitas através do site Go Fund Me, nesse link.

