Julio Florencio Cortázar (1914-1984) nasceu em Bruxelas, filho de argentinos, e viveu a infância entre a Europa e a Argentina, onde se formou em Letras e iniciou a docência antes de se dedicar inteiramente à literatura. Publicou em 1938 o livro de poemas Presencia, sob o pseudônimo Julio Denis, mas ganhou notoriedade com contos como “Casa tomada” e, sobretudo, com o romance Rayuela (1963), marco do Boom Latino-americano. Em 1951 mudou-se para Paris, trabalhou como tradutor da UNESCO e manteve forte engajamento político, destinando direitos autorais a presos políticos e adquirindo a nacionalidade francesa durante a ditadura argentina. Autor de narrativas experimentais e também de livros de poesia como Pameos y meopas e Salvo el crepúsculo, construiu uma obra marcada pela inovação formal, pelo diálogo com o surrealismo e pela tensão entre prosa e poesia. Faleceu em Paris, em 1984, deixando um legado que o consagra como um dos escritores mais influentes do século XX.
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A mosca
Vou ter que matar-te de novo.
Já te matei tantas vezes, em Casablanca, em Lima,
em Cristiânia,
em Montparnasse, numa fazenda na província de Lobos,
no bordel, na cozinha, em cima de um pente,
no escritório, neste travesseiro
vou ter que matar-te de novo,
eu, com a minha única vida.
Os amantes
Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.
São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.
Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.
Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.
Tradução de José Jeronymo Rivera
Meu sofrimento dobrado…
E também não estar triste,
não crescer com as fontes, não se dobrar nos salgueiros.
Larga é a luz para dois olhos, e a dor dança
nos peitos que aceitam sem fraqueza seus frios escarpins.
E não chamar-te de distante nem perdida
para não dar razão ao mar que te retém.
E elogiar-te na mais perfeita solidão
na hora em que teu nome é o primeiro lume em minha janela.
Benditos sejam os meus olhos
por terem olhado tão alto.
O que eu gosto do teu corpo…
O que eu gosto do teu corpo é o sexo.
O que eu gosto do teu sexo é a boca.
O que eu gosto da tua boca é a língua.
O que eu gosto da tua língua é a palavra.
O bom menino
Não saberei desamarrar os sapatos e deixar que a cidade morda meus pés
não me embriagarei debaixo de pontes, nem cometerei gafes de estilo.
Aceito este destino de camisas engomadas,
chego a tempo nos cinemas, logo cedo lugar às senhoras.
A grande desordem dos sentidos me cai mal. Opto
pela pasta de dente e as toalhas. Me vacino.
Veja que pobre amante, incapaz de meter-se numa fonte
para trazer-te um peixinho vermelho
com a raiva de vigilantes e babás.
Tradução de Antonio Miranda
Amo-te por sobrancelhas
Amo-te por sobrancelhas, por cabelo, debato-te em corredores
branquísimos onde se jogam as fontes da luz,
Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadeza de cicatriz,
vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam na chuva.
Não quero que tenhas uma forma, que sejas
precisamente o que vem por trás de tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitectura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do encontro.
Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.
pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco
com esse cabelo liso, esse sorriso.
Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho
é também a lua e o espelho,
procuro essa linha que faz tremer um homem
numa galeria de museu.
Além disso quero-te, e faz tempo e frio.
Não me deixe só diante de ti,
não me livre à noite desnuda,
à lua afiada das encruzilhadas,
a não ser mais que estes lábios que te bebem.
Quero ir a ti desde tu mesma
com esse movimento que fustiga teu corpo,
estende-o em pleno sol com um velame negro.
Quero chegar a ti desde ti mesma,
mirando-te desde os teus olhos,
beijando-te com essa boca que me beija.
Não é possível que sejamos dois, não é possível
que sejamos
dois.
Tradução de Antonio Miranda
Os deuses
Os deuses caminham entre coisas pisoteadas, segurando
as pontas dos seus mantos com gesto de asco.
Entre gatos podres, entre larvas abertas e acordeões,
sentindo nas sandálias a umidade dos farrapos corrompidos,
os vômitos do tempo.
Em seu céu despido já não moram, lançados
fora de si por uma dor, um sonho turvo,
estão feridos de pesadelo e lama, parando
para recontar seus mortos, as nuvens ao contrário,
os cães de língua quebrada,
a espreitar invejosos o abismo
onde ratos eretos disputam chiando
pedaços de bandeiras.
Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht
Viagem Infinita
para quem com seu incêndio te ilumina,
cósmico caracol de azul sonoro,
branco que vibra um címbalo de ouro,
último trecho da lâmina fina.
a mão que te busca na penumbra
se detém na tépida encruzilhada
onde musgo e coral guardam a entrada
e um rio de pirilampos te alumbra,
sim, portulano, da esmeralda o fulgor,
sirte e fanal nua mesma bandeja
quando a boca navegante beija
a poça mais profunda do teu dorso,
suave canaibalismo que devora
sua presa que o dança no abismo ermo,
oh, labirinto exato de si mesmo
onde o pavor das delícias mora
água para a sede de quem te viaja
enquanto a luz que junto ao leito vela
desce às tuas coxas sua úmida gazela
e por fim a trêmula flor escacha.
Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht
Encargo
Não me dê trégua, não me perdoes nunca.
Fustiga-me no sangue, que cada coisa cruel seja tu que
voltas.
Não me deixes dormir, não me dê paz!
Então ganharei meu reino,
nascerei lentamente.
Não me perdas como uma música fácil, não sejas carícia nem
luva;
tálha-me como um sílex, desespéra-me.
Guarda teu amor humano, teu sorriso, teu cabelo. Os dê.
Vem a mim com tua cólera seca de fósforos e escamas.
Grita. Vomíta-me areia na boca, rompe-me as goelas.
Não me importa ignorar-te em pleno dia,
saber que jogas cara ao sol e ao homem.
Compartilha!
Eu te peço a cruel cerimônia do talho,
o que ninguém te pede: as espinhas
até o osso. Arranca-me esta cara infame,
obriga-me a gritar ao fim meu verdadeiro nome.

