“Estado Febril”, obra poética publicada pela Macabéa Edições, editora voltada para a publicação de obras de mulheres, é o mais recente livro de poesia de Thaís Campolina
A grande tarefa de quem se propõe a fazer arte é a de se descobrir um demiurgo, um alquimista: alguém que transforma o comum em incomum. A poesia, dentre os mais diversos tipos de arte, é aquela, talvez, em que essa tarefa esteja mais em evidência, pois é aquela em que a linguagem está mais exposta a si própria, quase impossível de ser mascarada.
Podemos dizer que a poesia transforma a linguagem comum, dispersa e anódina, em uma hipótese de sentido, um estado de coisas em que se suspende a banalidade e se instaura uma transitoriedade que coloca em jogo os próprios senti(mo)mentos inerentes à palavra. Acho que é neste ponto que “Estado Febril”, de Thaís Campolina, consegue articular o jogo entre mundo, corpo e palavra.

“Estado Febril” é um livro de poemas publicado pela Macabéa Edições, editora voltada para a publicação de obras de mulheres. A autora, Thaís Campolina, nasceu em Divinópolis, mesma terra de Adélia Prado e diz que este fato traçou o seu destino como poeta. Eu já escrevi sobre um livro seu, a obra “Eu investigo qualquer coisa sem registro”, publicado pela Crivo Editorial, em 2021. Além dos dois livros de poemas, Thaís também se aventurou nas plaquetes, pequenos livretos de poesia, com Noticiosas (2023), Línguas soltas (2024) e Frigideira (2024).
É possível dizer que “Estado Febril” é um livro que se instaura como uma espécie de geografia e geomorfia poética. Dividido em quatro partes: Dupla hélice, corpo celular, lentes de quartzo e a composição das estrelas, os poemas partem de dois elementos estruturais que sedimentam o solo por onde as palavras vão se montar: as geometrias e as geografias.
A primeira parte, por exemplo, parte da imagem triangular de uma pirâmide para compor o surgimento de um corpo feminino diante da estrutura familiar. Aqui, ao que parece, Thaís tenta incorporar uma lógica da metamorfose em que uma coisa vira outra: a família tradicional, que se forma no triângulo pai – mãe – filha – precisa entrar em choque com outras formas geométricas triangulares que, no momento em que a ponta “filha”, por sua vez, começa a crescer, precisa modular a própria forma de ser. Este movimento de ruptura dentro de si própria se dá através de uma espécie de “mecanismo” de sobrevivência:
uma pirâmide
se levanta
sozinha quando você abre
a porta da casa de seus pais
Note que o próprio poema possui a forma de uma pirâmide, desenhando na estrutura da página o próprio desenho do corpo. Este procedimento vai se repetir em outros poemas como em ciência em que:
quando nós
lambemos feridas
(…)
tornamos mais firmes
as melhores e piores características
encontradas em nossas cadeias
de dna compartilhado
O interessante é que a forma piramidal, vista através da marca da produção de desejo, pode ser entendida como uma imagem do próprio desenho da pélvis e da vulva feminina, como se o desenho do triângulo que inclui barriga, uterino, sistema reprodutor e vagina, fossem em si a base para construção desses poemas que partem do desenho do núcleo familiar.
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Em outras palavras, pode-se dizer que os poemas de Thaís, enquanto desenham suas origens, marcam nas páginas desenhos de uma buceta, sem medo de misturar isso com a ideia conservadora de família. Ao contrário, estes triângulos rompem a arcada tradicional, como em um segredo, em um modelo em que a família não pode ser utopia de acolhimento, um círculo, pois se forma através de ângulos:
nenhuma família
consegue se encontrar numa esfera
porque em um sistema circular é impossível caber
tantas angulações
No segundo movimento do livro, “corpo celular”, observamos uma transfiguração da forma do triângulo para a própria estrutura de uma célula: é quando Thais reúne formas e forças de referências que vão, ambivalentemente moldando um caráter ético, estético e político, enquanto realizam formas negativas de existência: a formação desse eu em relação às violências do mundo vivenciadas por uma mulher. Logo no primeiro poema, a imagem da trepadeira, em toda a sua multiplicidade de significação, aparece como retrato de um desamparo:
assim como eu
e também a parede
a trepadeira precisa
de suporte
para crescer
Esse caráter formativo em negativo, vai aparecendo através de fracassos, da tarântula da máquina de lavar à marinheira sem âncora, vivendo sua própria versão de cthulhu, afinal:
nunca aprendi a nadar de costas
nuvens me distraem mais que ácido lático
Assim, “Estado Febril”, que mergulha também nas formas visuais em “lentes de quartzo”, e da linguagem como matéria, em” a composição das estrelas”, vai desenhando na página, abrindo triângulos e células que não se encadeiam, mas se contaminam, como se narrassem não eventos, mas existências suspensas, cometas que passam para lá e para cá desenhando formas móveis.
Nos diversos jogos com as referências, temos Thais simultaneamente se aproximando e recusando Adília Lopes, recorrendo ao feminismo inaugural de Virgínia Woolf, ao feminismo literário da editora Bianca Garcia e ao feminismo negro de Carolina de Jesus, e compondo suas constelações também com figuras como os filmes Adeus Lenin e Jurassic Park e Lady Bird, até chegar no que chama de “mercurial”.
O termo, cunhado para falar de todas as mulheres interessantes que conhece, celebra e realiza um estado febril, pulsante, desejante, feroz e veloz dessa “mulheridade”. Uma espécie de confluência de épocas, de ubiquidade de experiências que são, singularmente de uma, de Thais, mas universalmente repetida por outras, por todas.

Não é exatamente uma identidade, ao contrário, é uma perda de individualidade para cair numa coletividade, uma constelação, uma pedra repleta de partículas. Por fim, mulheres que são elementos químicos, alquímicos de construção de outras mulheres e, porque não, de todos nós:
entre níquel, ferro e magnésio
uma escuridão quente sem nome
ainda que igualmente telúrica
também pressiona Lygia, Silvina e Mary
a escrever
É como uma propulsão do tempo em que uma empurra a outra para a frente, para a palavra, e este motor nunca cessa, nunca enguiça, mas enfrenta o caos numa “rebeldia da na particularidade” em que nasce a poeta em seu estado febril:
uma mulher disse para minha mãe
sua filha deverá se chamar Virgínia
quando nasci fui batizada Thaís Campolina