“Favela de Barro – Instáveis Moradias em Queda”: a favela no centro do teatro

Favela de Barro – Instáveis Moradias em Queda não é apenas um espetáculo, é um manifesto cênico, um grito de existência que ecoa das periferias para os palcos hegemônicos. Com dramaturgia afiada de JùpïRã Transeunte, o trabalho da Esquadrilha Marginália — grupo teatral de Cubatão (Baixada Santista) — desafia as estruturas do teatro tradicional, colocando a favela não como tema, mas como corpo pulsante da narrativa.

Em quatro capítulos que mesclam poesia, ancestralidade e denúncia, a peça desenha um mapa de resistência, desde Canudos até o Morro da Providência, enquanto questiona: “Minha avó disse mangue preto também água…”. Aqui, a cena é feita de terra, suor e verso cubatense — porque estes corpos não representam a favela, eles são a favela: Kuipata’a, viva, em carne e voz.

A dramaturgia de Favela de Barro – Instáveis Moradias em Queda, assinada por JùpïRã Transeunte, é uma obra potente e urgente, tecendo narrativas que transcendem o palco para ecoar como um grito de resistência e existência. Com uma linguagem afiada e poética, o texto corta como faca ao expor as contradições da elite progressista, enquanto mergulha nas raízes históricas da favela — desde Canudos até o Morro da Providência — com uma sensibilidade que transforma dor em arte. A estrutura em quatro capítulos, repleta de versos e multiplicidade de vozes, desafia as convenções teatrais, colocando corpos marginais no centro como protagonistas de suas próprias histórias.

A força da escrita está na sua capacidade de ser, ao mesmo tempo, um soco no estômago e um abraço acolhedor, expondo violências estruturais sem perder a beleza da delicadeza e da coletividade. É teatro que não apenas fala sobre a favela, mas a partir dela, pulsando com sinceridade, em uma dramaturgia viva, necessária e incontornável.

O elenco de Favela de Barro – Instáveis Moradias em Queda é um coletivo de corpos que não apenas interpretam, mas habitam a cena com uma potência rara, transformando cada gesto, palavra e silêncio em um ato político e poético. Julia Victor constrói imagens vívidas com sua fala, imprimindo uma força narrativa que ressoa muito além do palco. Luiz Guilherme, com um trabalho corporal refinado, dá vida a mitos e memórias, tensionando o físico e o simbólico com maestria.

Jezuz Pereira rouba a cena não só pela incorporação vocal — afiada como um grito de denúncia — mas por uma presença de palco magnética, capaz de transitar entre a ironia cortante e a vulnerabilidade dilacerante. Já a química explosiva entre ele, Luiz Guilherme e Rafael Almeida gera cenas ácidas, temperadas por um humor que é arma e alívio, rasgando convenções com irreverência e dor. JùpïRã Transeunte, além da dramaturgia urgente, integra-se ao conjunto com uma entrega que reforça o caráter coletivo da obra.

A dimensão técnica de Favela de Barro – Instáveis Moradias em Queda é tão potente e proposital quanto sua dramaturgia, funcionando como extensão orgânica da narrativa. A cenografia de Jezuz Pereira, com seu ciclo de madeira mutável, recria a favela não como pano de fundo, mas como corpo vivo do espetáculo — um espaço que se transforma e resiste, tal qual as moradias precárias que simboliza.

O desenho de luz de Babi Sabino opera como linguagem própria: precisão cirúrgica que alterna entre a delicadeza dos afetos e a violência crua das ações policiais, amplificando a carga dramática sem jamais roubar a cena. Mas é na sonoplastia de Breno Garcia (Groovy) que a técnica alcança seu golpe de genialidade: ao incorporar o DJ como personagem ativo — uma rádio comunitária pulsante no palco — o som deixa de ser trilha para se tornar voz política, rompendo a quarta parede e materializando a favela como território sonoro. 

A direção de Sander Newton se revela um trabalho de rara sensibilidade e ousadia, capaz de articular a potência bruta da dramaturgia neomarginal com uma linguagem cênica que desafia as convenções do teatro tradicional. Com um olhar afiado para o pós-dramático, Newton não apenas organiza os elementos em cena, mas os liberta em um fluxo orgânico onde texto, corpo, luz e som se entrelaçam como manifestação política.

Favela de Barro – Instáveis Moradias em Queda não é apenas um espetáculo, mas um ato de insurgência cênica que ressignifica o teatro como espaço de disputa. A Esquadrilha Marginália, com raízes fincadas na periferia de Cubatão, não sobe a serra para pedir licença, mas para ocupar com a força bruta de quem transforma dor em verbo, luta em movimento e memória em carne viva.

A dramaturgia cortante de JùpïRã Transeunte, os corpos-eloquentes do elenco e a ousadia técnica que faz do DJ um personagem político comprovam que a favela não precisa de representação, ela se autorrepresenta, com toda sua complexidade, humor ácido e ferida aberta. Sander Newton, ao dirigir com ouvido sintonizado na poesia do neomarginal, entrega uma encenação que não teme o caos organizado da quebrada, onde cada luz, som e gesto é um ato de resistência. O que poderia ser somente denúncia torna-se celebração da resiliência negra e periférica, um teatro que não quer ser visto pela burguesia, mas sim encarado por ela. Se a arte tem o poder de desestabilizar, Favela de Barro é um terremoto.

Eu me sinto tocado e cativado ao ver grupos como a Esquadrilha Marginália atravessando barreiras e ocupando espaços antes dominados pela branquitude. Eles não apenas sobem a serra com suas dores e lutas diárias — chegam à Avenida Paulista como faróis de um teatro que não pede permissão, mas exige reconhecimento.

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