Ao longo da história, a literatura explorou o acaso como espelho da vida. Atualmente, outras telas mostram o mesmo.
Desde os primeiros registros literários, o acaso aparece como força narrativa, como catalisador de encontros, desastres, epifanias e reviravoltas. A literatura, ao lidar com a condição humana, não poderia ignorar o imponderável — aquilo que escapa ao controle, que surpreende e que, muitas vezes, define destinos.
De autores clássicos como Machado de Assis a modernistas como Julio Cortázar, o acaso é tratado ora como ironia do destino, ora como abismo metafísico. Ele não apenas alimenta a trama, mas questiona o próprio sentido da vida e da narrativa.
Machado de Assis e a ironia do destino
Machado de Assis é um mestre do acaso disfarçado de casualidade. Em obras como “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, eventos aparentemente insignificantes desencadeiam mudanças profundas.
O famoso suposto adultério de Capitu, por exemplo, nunca é confirmado; resta ao leitor especular se o ciúme de Bentinho é fundamentado ou fruto de interpretações distorcidas. Nesse jogo, o acaso não apenas move a história: ele esconde a verdade.
Outro exemplo emblemático é “O Alienista”, em que a linha entre sanidade e loucura é atravessada por decisões arbitrárias do personagem principal, o Dr. Simão Bacamarte. A crítica social emerge do modo como o acaso e o julgamento pessoal constroem ou destroem reputações. Em Machado, o acaso tem sabor de ironia, é um espelho da hipocrisia social e da fragilidade do raciocínio humano.
Cortázar e o insólito como regra
Se Machado usa o acaso como ironia, Julio Cortázar o transforma em essência de sua literatura. Em contos como “A Continuidade dos Parques” e “Casa Tomada”, o inusitado se infiltra no cotidiano como uma fissura no real. O acaso, aqui, é quase sobrenatural, um lembrete de que a ordem é sempre provisória.
No icônico conto “O Jogo da Amarelinha” (Rayuela), a própria estrutura do livro já propõe um jogo com o acaso: o leitor pode escolher entre uma leitura linear ou uma leitura aleatória, pulando capítulos conforme uma tabela sugerida pelo autor. Esse gesto subverte a ideia tradicional de enredo e reforça que, na vida (e na arte), não há um único caminho certo — tudo depende do ponto de partida, da escolha, da sorte.
Cortázar mostra que o acaso pode ser o que resta quando o sentido se desfaz. É uma maneira de encarar a existência sem garantias, onde a beleza surge justamente da surpresa.
O acaso como motor existencial
Na literatura existencialista, o acaso é o que desafia a lógica causal do mundo. Em “O Estrangeiro”, de Albert Camus, o assassinato cometido por Meursault é provocado, em última instância, pela luz do sol refletida na lâmina de uma faca. Um evento banal transforma-se em ato definitivo, sem moral, sem justificativa — apenas consequência do momento. O acaso é, nesse caso, a prova de que o universo é indiferente aos nossos planos.
Autores como Kafka também exploraram o acaso como força opressiva. Em “O Processo”, Josef K. é preso sem saber o motivo, vítima de um sistema aleatório, impenetrável. O acaso, longe de libertar, é aqui uma prisão invisível. O absurdo da vida é sustentado justamente por essa ausência de lógica.
Jogos de slot e o acaso digital
Nos dias de hoje, o fascínio humano pelo acaso não desapareceu, apenas mudou de cenário. Se antes ele se manifestava nas páginas de romances e contos, hoje também se revela nas telas digitais, nos algoritmos que oferecem recompensas imprevisíveis.
A popularidade dos jogos de slot — que superam 90% das apostas em um cassino online no Brasil — talvez sejam a representação perfeita dessa ideia. Esses jogos são, essencialmente, simulações do acaso. Cada giro é uma promessa de surpresa, de sorte inesperada, de mudança abrupta de destino, assim como na literatura.
O apelo dos jogos de slot está diretamente ligado ao desejo de controlar o incontrolável, ou pelo menos de se iludir com essa possibilidade. Eles capturam o mesmo impulso que moveu personagens de Machado e Cortázar: a ideia de que, num segundo, tudo pode mudar.
Embora sejam produtos da tecnologia e do entretenimento digital, esses jogos revelam algo ancestral: o encanto por aquilo que escapa à razão, que desafia a lógica e que talvez revele, por acidente, algum tipo de verdade interior.
O acaso como espelho do humano
Mais do que um artifício narrativo, o acaso é, na literatura, um retrato da condição humana. Somos todos personagens em histórias sem roteiros fixos, sujeitos às contingências do tempo, do espaço, das decisões alheias e dos próprios erros.
Ao explorar o acaso, escritores como Machado e Cortázar nos lembram que viver é, em grande parte, estar exposto ao imprevisto. É justamente aí que reside o mistério, a beleza e a tragédia da existência. Assim como em um giro nos jogos de slot, não sabemos o que virá a seguir — e talvez seja essa incerteza o que dá à vida (e à literatura) seu sabor mais autêntico.