Há muitas histórias da chamada terra da morte branca, grande região gélida de Kolimá, leste da Sibéria. Costumava-se mandar para esse lugar de nevoeiro branco, prisioneiros ou quaisquer pessoas contrárias às perspectivas da União Soviética, governada por Stálin. Este foi o caso de Varlam Chalámov. Defensor de Trótski, foi preso diversas vezes, sua “estadia” mais longa foi de 1937 a 1951. Quando ele saiu daquele lugar sinistro, poderia seguir sua vida, tentar recuperar-se dos horrores vividos por mais de quinze anos, porém, ele fez o contrário. Chegou em casa e resolveu escrever. De alguma forma, o autor, ao escrever, reviveu e organizou este trauma, que se tornou o cerne de A margem esquerda , livro que faz parte da série Contos de Kolimá. O trauma da fome, de não ser um homem e de vivenciar, com poucas roupas, quarenta graus negativos. Clima inimaginável para nós, brasileiros, contudo imagino que congela até os ossos.
Chalámov não se esquivou de assuntos difíceis: viveu, testemunhou e narrou um episódio horrível. Logo, podemos ler a obra de Chalámov, como literatura de testemunho, a qual pode ser entendida como “[…] uma forma de recriação de mundos baseados em experiências memorialísticas de sujeitos que testemunharam, de alguma forma, um evento histórico. Narrativas testemunhais são reconstruções de mundos implantados pelo autor.”
A obra, traduzida por Cecília Rosas e lançada pela editora 34, é dividida em vinte e cinco contos curtos, em que Chalámov narra os momentos em que ele e os companheiros de prisão trabalhavam cerca de dezesseis horas por dia em minas de carvão e ouro, completamente exaustos pelo frio e com alimentação inadequada. Além disso, ele relata doenças contagiosas, como lepra e os piolhos que, mesmo assim, os mantinham na rotina exaustiva sob o olhar dos guardas, a trabalhar até que a morte venha buscá-los. O inferno, como costuma habitar no imaginário popular, é quente, com fogo por toda parte, mas, na verdade, o inferno é frio e congelante, assim como o nono círculo do inferno de Dante na Divina Comédia.
Totalitarismo, morte, fome e frio estão entrelaçados em Kolimá e a combinação desses fatores é a destruição da subjetividade humana. No entanto, o autor, aqui, está interessado justamente em como não se deixar em destruir perante as circunstâncias infernais. Ele deseja crer, a todo instante, que é possível resistir, como diz Saviano. Entretanto, não se enganem. Como Saviano diz no prefácio do livro, não é um discurso esperançoso nem mesmo religioso, mas é o orgulho de sobreviver. É sobre não deixar o totalitarismo te vencer, é sobre não deixar que a subjetividade se fragmente perante as situações torturantes.
Para escrever essa condição de vida abominável, Chalámov é sucinto e econômico. É uma linguagem fria, como se ele estivesse em Kolimá apenas para observar e relatar. Tal distanciamento talvez seja proposital, uma vez que “[…] faz-se necessária uma gramática tão dura quanto a cena relatada.” Essa estética e o trabalho literário de Chlámov lembram-me do escritor brasileiro Graciliano Ramos, o qual, inclusive, escreveu Memórias do cárcere, o qual relata o tempo em que ficou preso pelo Estado brasileiro. Ambas as obras dialogam: a memória, a história e arte entrelaçam-se nas páginas escritas. Os autores, além disso, buscam uma escrita que pretende ser verdadeira, um testemunho. O autor russo tenta, inclusive, registrar cheiros do lugar inóspito:
Pode parecer que o pus tem o mesmo cheiro em qualquer lugar, que a morte é a mesma em qualquer lugar, mas não. Por toda a vida, Kubantsev parecia sentir o cheiro das feridas daqueles seus primeiros pacientes em Kolimá.
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Por que escrever sobre campos de trabalho forçado? Por que escrever sobre a brutalidade humana? Aliás, por que devemos ler textos que deixam nossos estômagos embrulhados? São perguntas complexas,entretanto, quero salientar um ponto. Líderes de caráter duvidosos estão voltando. O candidato estadunidense cujo rosto tem cor de cenoura, ganhou a última eleição nos Estados Unidos. Há vários grupos extremistas espalhados pela Europa. Putin, desde que me entendo por gente, ocupa a cadeira presidencial da Rússia e, agora, promove uma espécie de culto a Stalin. Devemos ler, então, para não esquecer o horror e as pessoas que sofreram lá, ainda que as palavras literárias sejam difíceis de digerir.
De fato, a obra que temos em mãos exige que o leitor tenha forças para virar as páginas. Cada capítulo do livro forma um nó na garganta. É assustador, pior que um livro de terror, porque não é uma história ficcional, é o cúmulo da aflição, tão real quanto o cuspe dos prisioneiros que congela no ar. Ler esses contos não estava programado em minhas leituras de 2024, surgiu por acaso para a disciplina Literatura Russa, de repente, estava trancada em meus aposentos lendo Chálamov.
Embora seja uma informação que não acrescenta em nada a este texto, quando eu menos esperava, no meio das minhas atividades de rotina,eu lembrava das pessoas de Kolimá. Claro, eu não estou em condições deploráveis, no entanto, como diz Savino no prefácio do livro, as palavras do russo “[…] nos orientam para um viver mais consciente. Mais verdadeiro. Absoluto, diz Saviano, mais uma vez.
Penso que essa “consciência do viver” seguiu Chálamov depois da prisão. Para ele, não bastou sobreviver ao sofrimento dos sofrimentos. Ele tinha de escrever, era a testemunha viva daquele caos congelado. A escrita era uma missão, o autor nutria desejo de registrar cada ferimento causado naquele lugar. Não era seu propósito procurar os motivos pelos quais a barbaridade ocorreu, pelo contrário, era narrar, porque se ele não narrasse, quem contaria a história de Kolimá?
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Bibliografia utilizada:
DOS REIS, M. E. CONTOS DE KOLIMÁ, DE VARLAM CHALÁMOV. Revista Guará – Revista de Linguagem e Literatura, Goiânia, Brasil, v. 11, n. 1, p. 31–34, 2022. DOI: 10.18224/gua.v11i1.8429. Disponível em: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/guara/article/view/8429. Acesso em: 13 dez. 2024.
MACIELl, C. P. R. (2016). Literatura de testemunho: leituras comparadas de Primo Levi, Anne Frank, Immaculée Ilibagiza e Michel Laub. Opiniães, 5(9), 74-80. https://doi.org/10.11606/issn.2525-8133.opiniaes.2016.124618 SILVA, A. Z. M. . Notas sobre a narrativa de testemunho em Memórias do Cárcere e Contos de Kolimá.In: ABRALIC, 2017, Rio de Janeiro. Anais do XV Congresso Internacional Abralic, 2017.