“A Tristeza” (2021) tenta refletir pandemia de modo violento

Assistindo a A Tristeza, o quadrinho Crossed veio à mente, pois ambos possuem pontos de partida extremamente similares. Um belo dia, por conta de um vírus, pessoas comuns se transformam em assassinos violentos, capazes dos mais grotescos atos contra outro ser humano, e, nos dois casos, os infectados possuem uma marca facial. Na HQ, uma erupção cutânea em forma de cruz — daí o título — e, no filme dirigido por Rob Jabbaz, um inchaço na região dos olhos que se assemelha a lágrimas, e daí, também, o título.

O quadrinho de Garth Ennis ficou famoso, ou infame, por conta da representação extremamente gráfica das violências que ocorrem no seu universo. Mas, apesar de o grotesco ser, de fato, um chamariz, a obra em si possui outras preocupações, questionando e refletindo sobre a capacidade de crueldade do ser humano e o risco que seus personagens correm de, na luta pela sobrevivência, se tornarem muito semelhantes aos monstros que tomaram o mundo.

A Tristeza, em exibição na sessão Midnight Madness do Festival do Rio, não tem tais aspirações e, apesar de apresentar um comentário direto sobre diversas questões encaradas pela humanidade durante a pandemia de COVID-19, seu interesse é muito mais direto: mostrar cenas de violência absurda. Na jornada do par de protagonistas, o casal Jim (Berant Zhu) e Kat (Regina Lei) se deparam com um sem-fim de atrocidades cometidas pelos infectados, de óleo quente na cara a braços quebrados, e até o uso, digamos, inventivo, de uma cavidade ocular.

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A violência gráfica pode até impressionar, especialmente diante do bom trabalho de maquiagem aqui apresentado, mas não sustenta uma narrativa, especialmente quando se torna evidente que a obra não tem muito mais a oferecer além disso e, surpreendentemente, parece poupar seus personagens principais da mesma violência. Não há pudor em mostrar alguém tendo seu rosto destruído por mordidas, mas o protagonista perdendo os dedos merece um corte rápido, sem muito sofrimento à vista.

Não ajuda também o tom excessivamente sério adotado pela obra, que se torna um tanto contraditório. Devemos lamentar ou nos exaltar com os baldes de sangue na tela? A música sombria aponta para um lado, enquanto os lentos closes em corpos ensanguentados e em destruição sinalizam outra coisa. Não é à toa que um dos melhores momentos do filme se dá quando ele abraça o absurdo da sua situação, com uma homenagem a Scanners – Sua Mente Pode Destruir, que proporciona um vislumbre de um outro caminho que Jabbaz poderia ter adotado para sua obra.

Assim, falta um pouco mais de substância a A Tristeza, cujos comentários sobre a pandemia se reduzem a falas na boca dos personagens, sem explorar de modo efetivo as ramificações de certas posições negacionistas na sociedade. O par de protagonistas, que se separa bem cedo no filme, encaram efetivamente a mesma jornada, testemunhando crueldades uma após a outra, com raras mudanças no tom. A partir da vigésima quinta facada ou membro decepado, até a mais fantástica violência perde a graça.

Texto de cobertura do Festival do Rio 2024

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