Uma leitura de As Aventuras de Ngunga na comemoração dos 50 anos de lançamento da obra
A literatura é um documento histórico. Diferentemente da História que precisa se ater aos registros materiais e aos documentos propriamente ditos, a literatura captura uma espécie de espírito do tempo e faz a transposição de figuras imaginadas em sensibilidades vividas. O mais potente na literatura, porém, é que essas figuras não precisam nem ter vivido realmente, elas não precisam ser traçadas nos mapas, basta que tenham uma sensibilidade que vem de dentro, sentida, navegada, ainda que ínfima, que estão vivas. Assim, a literatura se torna a verdadeira história de um momento, de um tempo e de um povo. A meu ver, Pepetela construiu toda a história da independência de Angola na figura de um menino: Ngunga.
É possível dizer que As Aventuras de Ngunga, do grande escritor angolano Pepetela, publicado aqui no Brasil pela Editora Kapulana, é um desses relatos que nos coloca diante de um problema central: os problemas causados pelos problemas da colonização. No caso do livro, temos como pano de fundo a Luta pela Libertação da Angola que começa em 1961 e se arrasta até 1974 quando também cai o ditador Salazar. Porém, o romance de Pepetela, apesar de tratar desses grandes temas, escreve também uma infra-história talvez até mais doída.
Se todos nós sabemos como o processo de colonização é devastador de forma geral para povos e territórios, vamos perceber com o livro que também existem alguns efeitos e consequências disso que refletem um lado ainda mais assustador dessas guerras: a destruição de uma geração de crianças e jovens. Vemos crianças orfãs vagando sozinhas pela terra, o recrutamento de crianças para a luta armada ainda nos primeiros anos de vida, o desmembramento de grupos tradicionais, a militarização da vida de todos, a perda da terra como referência existencial. Tudo isso, consequência de uma guerra que uma liberdade necessária, mas que custa muito. E esse talvez seja o paradoxo da luta armada: ela é a única saída para determinados grupos, mas a última saída nem sempre é uma boa saída. Mas vamos falar do livro.
Quem se lembra de procurar Nhunga, o órfão, se morresse? Quem deixou uma vez, uma mandioca guardada para Nhunga?
Ngunga é um menino que, próximo dos dez anos, teve toda a sua família assassinada diante de seus olhos pelos colonizadores. Sozinho, Ngunga passa a andar de kimbo em kimbo (aldeias) a procura de acolhimento, lugar, vida, alimento. É quando conhece União que lhe acolhe e lhe educa nos primeiros passos da vida. A partir da morte de União, Ngunga volta a perambular pelos povoados, experimentando uma sensação de liberdade que, ao entrar em contato direto com os guerrilheiros da luta armada, vai transformar completamente sua vida. Uma nova existência que nasce de uma nova educação.
Ngunga vai até a escola, ou melhor, a escolha vai até ele na figura de um professor. Com o alargamento da visão, Ngunga começa a perceber questões sociais do entorno em que vive. Passa a entender que ele e seus irmãos passam fome não porque o mundo é difícil, mas porque existem colonizadores que criaram aquela condição. Passa a entender que se alguns vivem escondidos é porque assim fazem para poder enfrentar o poder e transformar as coisas. Descobre a ruindade em todos os lados, mas descobre também a esperança que povoa aqueles pensamentos, ainda que sem pousada em ninguém. É a guerra que endurece muitos. Ainda criança, Ngunga vai adquirindo consciência de que toda a sua existência é política. E assim passa a entender que aprender mais e ganhar mais ferramentas para disputar ideias seria a única forma dele de ganhar o mundo.
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“As histórias são sempre um pouco modificadas pelo povo e a guerra dificulta as buscas.
Ou talvez Ngunga tivesse um poder e esteja agora em todos nós, nós os que recusamos viver no arame farpado (…)”
Ngunga, de certa forma, encarna a força revolucionária de um país que está nascendo livre. Assim como Ngunga, Angola também está no começo da vida livre, um país em nascimento, ainda descobrindo suas vocações, disputando suas forças, entendendo seus limites. Ngunga é símbolo também da transformação, da possibilidade de se transformar a realidade em que se vive de dentro dessa realidade, sem esperar uma ajuda que promete, mas nunca vem. Mostra também, claro, que existe na infância uma pureza que é necessária para toda luta. Alguns endurecem, mas Ngunga aprende a endurecer sem perder a ternura, jamais.
Ao fim, Ngunga torna-se todo mundo, torna-se um país inteiro e torna-se também Pepetela que foi guerrilheiro durante as lutas de independência. Essas aventuras que completam em 2023, 50 anos, são o maior documento histórico e testemunho do que foi viver, crescer, amadurecer e reconhecer um novo mundo em uma Angola que nascia. Pepetela, um mágico das palavras, é tão sensível que, ao chegar no fim, eu só conseguia pensar que é assim que deve ser todo guerrilheiro. Sei que não é, mas…quem sabe?
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