Dicionário traz 365 falsos cognatos entre o português e o inglês
O escritor piauiense Assis Brasil escreve num livro infantil Os Nadinhas, publicado em 1995, a aventura de seres que moram no interior de um dicionário. Por serem muito pequeninos, eles não são esmagados pelas folhas dos livros fechados, o que faz com que eles possam transitar por entre as palavras. Dentre todas palavras possíveis, eles decidem morar em cima da palavra “nada”.
Trago a imagem desses pequenos seres que moram em um dicionário para mostrar que a tarefa de catalogar palavras, de glossariar, dicionariar, reunindo toda uma língua em um único volume, não é uma tarefa de acúmulo, matemática, científica, mas uma tarefa da invenção. Mais do que juntar palavras, um dicionário é uma narrativa sobre o pensamento, uma investida sobre uma língua que se move por entre os livros e falas e transfere conhecimento de um lugar para o outro.
O mais interessante é que tantos dicionários passaram por mim durante a vida, mas só pude constatar isso ao encontrar o Dicionário e Prática de False Friends – 365 False Friends – one for each day of the year, livro de Amadeu Marques e Gisele Aga que está para ser publicado em breve pela editora Lexikon. Amadeu e Gisele reúnem e compilam os “false friends” entre a língua portuguesa e o inglês, mostrando que, para além de línguas de troncos irmãos – o latino e o anglo-saxônico – elas também dividem uma série de termos que eles chamam de “enganosos”, no desvão que existe entre uma língua e outra.
O dicionário é uma espécie de coletânea sobre os false friends que, grosso modo, são aquelas palavras cujas grafias nas duas línguas são idênticas ou semelhantes mas que apresentam sentidos distintos. Eles destacam que o termo false friends foi escolhido como uma ampliação de termos mais comuns para descrever a ocorrência – os “falsos cognatos” ou os “termos heterossemânticos” – tanto para tornar o conceito mais popular quanto para conseguir capturar outras ocorrências da língua que estejam por fora do escopo dos termos tradicionais.
Uma das coisas que mais se destaca no Dicionário e Prática de False Friends – 365 False Friends – one for each day of the year é que Amadeu Marques e Gisele Aga criaram um formato ao mesmo tempo simples e riquíssimo para organizar os vocábulos a partir de diferentes abordagens: apresentando a palavra em inglês e sua tradução para o português, com transcrição fonética, indicação de palavras com as quais fazem rima e formas para o uso das palavras em frases; apontando o caminho que postula essa palavra como um false friend em seus diversos usos na língua inglesa; indicando as palavras que efetivamente representam aquilo que nossas palavras em português querem dizer – você não engrossa um caldo engrossing it, mas thickening it. Ao final de cada verbete, os autores disponibilizam alguns breves exercícios para que coloquemos em prática o uso de cada palavra em sentenças. Em alguns casos, incluem também uma caixinha azul com algumas explicações complementares como citações, comentários, curiosidades ou até indicações de livros ou leituras.
Como não sou um grande especialista em inglês, fui navegando pelo livro com a curiosidade de um navegador, tal qual os bichinhos de Os Nadinhas, e fui encontrando palavras que trombavam no meu caminho. Uma das minhas preferidas é o verbete agonize / agonise / agonizing / agonising / agony que, no inglês, não significa exatamente a agonia dos últimos momentos da vida, como usamos em português. Os autores usam Goethe para exemplificar que o “agonizando” no leito de morte prescinde da palavra “agonize” e pode ser descrito da seguinte forma: “Goethe was in his death throes when he said ‘Light! More Light!’ Those were his last words.” Assim, mostram que o vocábulo possui sentidos próximos, mas não exatamente idênticos, citando inclusive a coluna Agony Uncle, de Graham Norton, publicada aos sábados no jornal londrino The Daily Telegraph.
Passear pelos falsos amigos elencados por Amadeu e Gisele é como uma deliciosa trilha pelas palavras e pelas línguas. Somos tomados por surpresa, estranheza e, claro, pela graça de perceber que palavras contêm em si todo um mundo de possibilidades. A ideia de elencar uma palavra por dia quase nos convoca ao exercício de, todo dia, abrir as páginas do livro e aprender algo novo. E assim vamos mergulhando nesse mundo de letras que mostram que compliment não mede o tamanho das coisas, que compromise nada tem a ver com um compromisso marcado com um amigo e que contempt não é sinônimo de contente.
Gosto muito também de embezzle e embezzlement, que tão prontamente nos remetem a embelezar e, como dizem os autores, “nada têm a ver com beleza, ao contrário, falam de algo muito feio”. Nada de beleza em fraudar, enganar, desviar dinheiro. Mas mesmo as palavras que nos remetem ao “feio” são tratadas com tanto cuidado pelos autores que, ao final das descrições a respeito deste verbete, uma incrível historinha nos é apresentada, mostrando que nem mesmo as palavras “ruins” falam apenas de coisas ou pessoas ruins.
Na leitura do dicionário, temos ainda a incrível experiência de nos depararmos com palavras que, apesar de não serem exatamente iguais, nos permitem elucubrar relações de sentidos entre elas. É o caso de endure, por exemplo, que apesar de não significar “tornar duro” ou “endurecer”, fala de resistir, aguentar, tolerar – o que, de alguma forma, é a expressão de uma força, uma dureza que permite aguentar os desafios em que a vida nos lança.
É como se a leitura do dicionário nos devolvesse algo que há tempos se perdeu, uma espécie de surpresa como a do mundo infantil, dessa que se mostra na descoberta de algo inusitado e novo, que por mais banal que pareça ser tem essa capacidade de nos recolocar na nossa relação com as coisas – há tanto que não sabemos, há tanto para nos surpreender. Afinal, as palavras são isso: pedacinhos de sentido que nos oferecem inúmeras formas de ler, olhar e ouvir o mundo.
Para comprar o livro é só entrar no site da editora aqui!
#Publi