A ideia de que a palavra saudade só existe no português é uma das grandes máximas da nossa língua. Embora gere controvérsias, a expressão desse sentimento em uma palavra única, um substantivo tão marcante de uma nostalgia de algo ou alguém, de um tempo que passou ou, simplesmente, da marca presente da ausência de alguma coisa é um fato da língua portuguesa.
Porém, qual foi a primeira vez que a palavra saudade foi registrada na história? Pois bem, foi na arte e na literatura! Quem pela primeira vez a deixa registrada, é um trovador da corte de D. Afonso III, o quinto rei de Portugal, cujo reinado durou de 1248 a 1279, chamado Fernão Fernandes Cogominho que, em uma poesia, se dirige a uma dama a quem sente falta e ausência lhe oprime o peito. Ele diz:
“Amigu’e nom vos nem brades
de mi, e torto fazedes
mays nunca per mi creades
se mui cedo nom vcedes;
ca sodes mal conselhado
de mi sayr de mandado.
Nom dades agora nada
por mi, e poys vos partirdes
d aqui, mays mui bem vingada
serey de vós, quando virdes
ca sodes mal conselhado
de mi sayr de mandado.
Nom queredes viver migo
e moiro com soydade,
mays veredes, amigo,
poys que vos digu’eu verdade,
ca sodes mal conselhado
de mi sayr de mandado.”

Quem revela este fato é um livro de crônicas de Julio Dantas chamado “Abelhas Doiradas” —, publicado em 1925, em uma crônica chamada A Saudade. Dantas para quem a saudade é “palavra que parece que canta, que palpita, que estremece e que chora”, responde na crônica uma senhora que habita o Brasil e diz ter curiosidade para saber qual era a origem da palavra e, portanto, do sentimento de saudade. Diz ele:
“Entre as muitas cartas que costumo receber do Brasil, houve uma que especialmente me interessou. Nessa carta, cujo perfume se advinha ainda e cuja letra inglesa, audaciosa, um pouco viril, faz lembrar vagamente a das nossas raparigas educadas no Quelhas, a sua ilustre autora — porque decerto se trata de uma senhora —fala-me com ternura de Portugal e dos portugueses, e pergunta-me se será possível saber quem foi o primeiro escritor que empregou a palavra «saudade». É possível, sim, minha encantadora desconhecida; é, mesmo, muito mais fácil do que adivinhar que espiritual, que morena, que doirada beleza carioca se esconde por detrás dessas duas iniciais longas, esbeltas, nervosas como as pernas duma grande aranha azul.”
Então ele conta que a palavra saudade aparece pela primeira vez no “Cancioneiro da Vaticana”, uma coleção que reúne mais de mil canções dos trovadores galego-portugueses, que nos séculos XIII e XIV faziam suas apresentações para os reis, para os nobres ou para o simples populacho. Essa coletânea, recopiada no século XV, está hoje na biblioteca do Vaticano, motivo pelo qual ela recebe este nome. Ali aparece pela primeira vez a palavra, sob as formas arcaicas de “soydade” e “suydade”, mas já com seu sentido atual — e permanente — de sentimento de si (certa pessoa), ou melhor, sentimento de sua ausência (da ausência daquela pessoa).
Conta ainda que outras duas vezes que a palavra aparece, ainda no surgimento de nossa língua, é através do rei poeta e trovador português D. Dinis, (sexto rei de Portugal, de 1279 a 1325), que chora a ausência da rainha:
Que soydade de mha senhor ey
quando ne nembra d’ela qual vi,
e que me nembra que ben a oy
falar, e por quanto ben d’ela sey,
rog’eu a deüs que end’a o poder
que m’a leixe, se Ihi prouguer, Veer
Cedo ; ca pero mi nunca faz ben,
se a non vir non me posso guardar
de ssandecer ou morrer con pesar ;
e porque el a tod’ en poder ten,
rog’eu a deus que end’a o poder
que m’a leixe, se lhi prouguer, veer
Cedo; ca tal a fez nostro senhor
de quantas outras no mundo son \
non Ihi fez par, a la minha fé non,
e poyl a fez das melhores melhor,
rog*eu a deus que end’a o poder,
que m’a leixe, se lhi prouguer, veer
Cedo, ca tal a quis deus fazer,
que se a non vyr, non posso viver.
Além disso, no reinado seguinte, de Afonso IV (que durou de 1325 a 1357), quando embarcados os soldados portugueses para a Batalha do Salado, contra os mouros, choram na voz do poeta da corte João Zorro, as mulheres que ficam, angustiadas, à espera dos maridos:
“Mete El-rei barcas no rio forte; Quem amigo há, que Deus lho amostre; A La vai madre; Oj’ey suydade”.
E essa é uma breve história do começo da nossa palavra saudade, pelo menos no mundo da arte! Incrível, não?
Foto de capa: “Saudade” by Jose Ferraz de Almeida Júnior