Postado originalmente no site Ovo de Fantasma
Grande parte do pensamento em torno do século XX afirma que o marco para seu final foi a queda do muro de Berlim, em 1989. A queda do Muro seria o último grande obstáculo que representa a derradeira mudança social e política do século. Para mim há um outro elemento significativo que encerra nosso século, na medida em que transforma definitivamente um tipo de relação de liberdade e conquista de direitos individuais: A AIDS.
As últimas três décadas foram marcadas pela presença massiva da Aids e o gradual embate contra o avanço da doença. Na arte, isto não poderia ficar de fora. Esse artigo tem como objetivo fazer uma análise de três obras audiovisuais, cada uma de uma década, e observar como a doença interferia diretamente no corpo e na mente das pessoas. Para isso utilizarei três obras: Filadelfia de Jonathan Demme, com Tom Hanks e Denzel Washington. Posteriormente, a série da HBO Angels in America (2003), de Mike Nichols, com Al Pacino e Meryl Streep e, por fim, o documentário Como Sobreviver a uma Praga (2012) de David France, concorrente ao Oscar de Melhor documentário em 2013.
Filadélfia (Philadelphia, 1993)
Filadélfia é a história do advogado Andrew (Tom Hanks) que trabalha em uma grande empresa de advocacia e, após ser promovido, revela sem querer uma lesão no rosto, para um dos sócios da firma. Pouco tempo depois, um relatório para um grande caso de Andrew some e ele, já doente da Aids, é demitido por negligência. Ao farejar que sofria de preconceito, procura um advogado, Joe Miller (Denzel Washington), um negro homofóbico que resolve cuidar de seu caso e, aos poucos, vai desfazendo toda imagem que tinha dos homossexuais.
O filme mostra que algumas coisas na vida não são negociáveis, como por exemplo, a Aids. A Aids ali aparece não apenas como uma doença, uma praga, ou algo que assole uma minoria, mas sim um mal que transforma completamente a sociedade, e coloca em confronto diversas camadas e nichos sociais que precisam rever suas ideias, seus conceitos, suas ideologias, religiões e posicionamentos. A Aids desloca toda a noção de sexualidade para um ponto latente: aquilo que é liberdade é um mal? Onde está o mal, no preconceito ou na doença? Andrew responde quando afirma que a Aids não gera apenas uma morte física, mas principalmente uma morte social. Se levarmos em conta que os homossexuais, principalmente na década de oitenta, ainda precisavam ocultar sua orientação sexual, podemos dizer que essa minoria que mais sofre com a doença, praticamente desaparece como cidadão.
Para quem quiser conhecer mais, há o romance homônimo de Christopher Davis, baseado no roteiro para o filme de Ron Nywaner. O livro, lançado no mesmo ano do filme, afirma que é “o mais polêmico filme sobre a Aids”.
Angels in America (-, 2003)
Angels in America, baseada na peça homônima de Tony Kushner, se passa em Nova Iorque na década de 80 e narra a expansão da Aids pela sociedade que se vê energicamente levada ao limite físico, político, mental e ideológico e precisa, por conta disso, buscar uma forma de controle, convivência e sobrevivência, primeiro dos infectados e, depois, dos demais membros da comunidade. A série conta a vida de diversos personagens margeados pela questão da doença: alguns sofrendo com ela, outros sofrendo com quem sofre e outros sofrendo as consequências diretas do tratamento.
O mundo de Angels in America é violento, encantado, divino e tem um aspecto de Antigo Testamento, onde todos podem ser mortos a qualquer momento ou receber uma visão aniquiladora e apocalíptica, ou simplesmente perceber que todo seu mundo pode desabar a qualquer sinal dos céus. Esse encanto do mundo, por um lado, apresenta uma metafísica e uma possibilidade de ascensão ao outro mundo, por outro torna toda a vivência latente, na carne, sem cicatrizes, mas de pulsão de vida e morte se equilibrando por um fio que pode vir a se romper a qualquer momento.
A Aids, nesse contexto, é o elemento chave: é ela que desencadeia e leva todas as sensações ao seu limite. A sentença de morte, a pulsão sexual, a vontade de viver, a latência do amor, a fraternal relação, a moral religiosa, tudo isso é questionado pela obra e, através desse completo caos em que anjos e mortos e visões aparecem para interferir na vida é que podemos perceber como essa doença, essa praga que assola o mundo, em um determinado momento foi capaz de repaginar todo um projeto civilizatório e romper com qualquer barreira social para criar outras. A política, a religião, o corpo e, enfim, a vida, nunca mais poderia ser a mesma coisa.
Como sobreviver a uma praga (How to Survive a Plague, 2012)
Como sobreviver a uma praga, concorrente ao Oscar de Melhor Documentário em 2013, conta a trajetória dos homossexuais de São Francisco que tentam, a partir de reuniões e passeatas, participar e assumir o controle das ações governamentais e das empresas farmacêuticas no controle da Aids na década de 80. Por serem o grupo mais afetado pela doença, eram eles que viviam na pele suas consequências e sabiam quais remédios eram mais eficazes e quais combinações eram as mais perigosas. Assim, eles montam o grupo chamado ACT UP que se reúne regularmente para debater, apontar saídas, fazer palestras e conferências sobre o tema, além de estudos próprios com médicos a fim de achar remédios que haviam sido utilizados e cujo resultado havia sido positivo em pacientes pelo mundo. Para se ter uma ideia, juntos apresentam uma lista de mais de noventa remédios que haviam sido noticiados como eficazes.
No final, algumas dessas pessoas sobrevivem e podemos ver em seus rostos expressões de todas as crises que passaram desde a década de 80. Em seus corpos gastos pela doença e pelo tempo há muito afeto, um choro cansado das batalhas, saudoso, que deixa no ar a melancólica certeza de que tudo valeu a pena. A certeza desses homens é a de que muito se fez, muito se lutou, muito se mudou, mas nada vai trazer de volta a liberdade de outros tempos e a vida dos muitos que se foram.
* Matéria feita originalmente para o Ovo de Fantasma em 2013 e adaptada para o NotaTerapia em 2015.
Fonte: http://ovodefantasma.com.br/2013/08/26/dossie-aids-e-cinema/