Em Busca do Rigor e da Misericórdia, lançamento de 2015 do cantor Lobão, conta a história dos dois últimos anos do cantor e, principalmente, da feitura de seu último disco O Rigor e a Misericórdia. Sem poupar a si e as outros, Lobão é sério, grave e vai fundo naquilo que vê, mas assim como em 50 Anos a Mil o cantor consegue transpor o extremo carinho e afeto que tem pelo Brasil, pelas pessoas que ama e, principalmente, pela sua história. Claro, trata-se de um livro marcado também pela presença do cantor na política. A impressão que se tem é que Lobão, após sua biografia, em todas as esferas de sua vida, aprendeu e se deixou amar. Leia mais AQUI!
O NotaTerapia separou as melhores frases da obra. Confira:
Nesse instante, tive o pressentimento de que o universo clamava por ser observado por nós, e de que nós seríamos uma espécie de sentido do universo.
Sim! Naquele instante mágico, enfim meu luto acabara, e passei a me entrelaçar com meu pai por pura invenção, por amor, por método, por pura vontade.
Todas as tragédias, impossibilidades, distanciamentos, brigas, tudo isso, como num milagre, desaparecera, evaporara, tudo isso, como num milagre, desaparecera, evaporara com minhas lágrimas, com minha nova canção, meu novo bebê, com a sensação mágica de perceber que aquele pedaço de letra misturado àquela sequência de acordes nunca havia existido e que se manifestava pela primeira vez ali, naquele momento.
O universo é inteligente. Eu sou o universo sendo curioso. Sou um sentido do universo.
É um pequeno milagre poder experimentar todo esse processo e refletir sobre ele ao mesmo tempo, a transformação e a formalização de ideias e desejos, do nada, numa sequência ordenada de sons e palavras.
A solidão é a matéria escura da coletividade. Quem se nutre na solidão se torna um mundo, uma entidade que injeta sabedoria e oferece possibilidades múltiplas à coletividade.
Como diz George Steiner, na arte, na literatura e na música a duração não é tempo, e, para se engendrar a eternidade, é necessário um profundo mergulho na solidão. E nem sempre isso é tarefa fácil.
Costumo dizer que uma canção só vinga depois de eu ter chorado muito com ela; só se me tiver seduzido irredutivelmente, sem evaporar na insignificância do desinteresse.
Como já dizia o sábio, a poesia autoriza a esperança. Foi nesse diapasão que aprendi a me mover e a mover minhas metas. Erguia-se, enfim, meu ansiado projeto sob a égide da solidão. Nada poderia me deter. Nada poderá. Percebi que tinha a vontade, a disciplina, a habilidade, o rigor, a excelência e a loucura, as qualidades necessárias à realização de meu ambicioso objetivo.
Ali estava o nome do meu novo disco, O Rigor e a Misericórdia, surgido através de um dos métodos mais queridos, riscos e afetuosos que há: no diálogo profundo com aqueles que não perecem jamais, com uma imensa confraria de almas, inventei esse espaço que é onde “mora” a alma desse disco.
Embriagado por aquela nostalgia, peguei meu violão folk, um lindo Taylor, e me pus a tocar o tema, ao mesmo tempo provocando minha memória e invocando as sensações que me marcaram naquela profunda experiência amazônica: estrelas cravejantes num céu de negro profundo e fundido com a terra no breu da selva, a saudade da minha mulher querida de olhos de farol, olhos que se corporificavam nas estrelas lá em cima e que me apareciam quando deitava na rede, já em outro céu, uma lua que surgia entre as nuvens. Todas aquelas emoções díspares de desconforto, hospitalidade, calor doe dia, frio de noite, me invadiram a alma. O carinho dos habitantes do garimpo, o deslumbramento, a saudade, o pertencimento, a tristeza, a esperança, a devastação da floresta, o vapor do mercúrio naquelas imensas piscinas prateadas que, incrustadas naquele terreno avermelhado, vivo, de carne esfolada recém-deflorada, mais pareciam a paisagem de outro planeta.
Acabamos por esquecer que liberdade exige disciplina e restrições, enquanto a liberação simples e rasteira nos submete a uma servidão aos nossos impulsos, nos tornando seres anímicos e simplórios.
A emoção decorre daquilo que a criação informa, e não o contrário. Compor dessa maneira é como fazer um eletroencefalograma da alma.
Não me canso de me impressionar, e de me maravilhar, com a profunda interação entre meu trabalho e minha vida interior. O que sou, o que penso, o que leio, o que ouço, minhas reflexões, minha busca por mim mesmo, todo esse movimento íntimo foi e é vasculhado em minha procura por expressão, todo esse movimento resultou no modo como me comporto e, sobretudo, em música, na minha arte, no que componho.
A felicidade não é uma espera. Antes de tudo, é uma relação profunda com todas as pequenas conquistas, com os afetos, os amores. É a compreensão bem-humorada da condição humana. É ter a humildade de encarar as limitações individuais sem que seja ato de rendição nem procrastinação, mas, bem ao contrário, estímulo a melhorar, a seguir em frente e dividir esses avanços com o maior número de pessoas.
É o amor. A força que alimenta nossa vontade de prosseguir e que nos permite atravessar qualquer tipo de aflição, maldição, linchamento moral e banimento. De minha parte, portanto, queria…dilacerar. Mas nesse sentido lúdico, específico, para o qual dirigira minha música, meu disco e mesmo este livro; dilacerar corações com amor, dilacerar a mentira com inspiração, dilacerar a tristeza da infâmia com a beleza criativa. Com perseverança e rigor inimagináveis para determinadas criaturas, verter o menosprezo, a presunção e a tormenta em arma, em humildade, em serenidade, em canção.
Para a eternidade, o tempo sempre será nunca, e jamais perecerá na paralisia do desencanto. O momento não se insere necessariamente no tempo. E quantas das idiossincrasias que a ciência produz o encoraja a timidamente descobrir, compelidas a conviver sob as mesmas sombras do talvez, não guardam os maiores e mais profundos segredos da existência, da transcendência e do absurdo? Os milagres são uma espécie de potência da vontade de transformação que assombra com seu mistério profundo.
Edição: Record, 2015