Um homem com um passado trágico, muitas contas para acertar, uma insaciável sede por justiça e muito dinheiro para gastar com ela, que volta ao seu país natal anos depois de se ver acometido por uma tragédia, com novas habilidades de luta, disfarces e aliados improváveis em sua missão de fazer justiça vigilante contra criminosos, tudo isso vestido quase que eternamente em um uniforme preto. Se o leitor pensou “Batman!”, saiba que a autora também; mas, de acordo com os franceses, (!) esse é ninguém mais ninguém menos que Edmond Dantès, o conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas. Aparentemente.
Era de se esperar que os franceses tivessem maior respeito por sua própria herança literária, mas aparentemente não. O novo filme francês adaptando a obra, estrelado por Pierre Niney e aclamado na França, embora o porquê esteja além da compreensão dessa autora, deixa isso bem claro. A obra-prima de Dumas é alterada tão significativamente que, mais uma vez, torna-se praticamente irreconhecível; mais uma vez, é transformada em uma história que contraria totalmente tudo o que Dumas quis dizer em seu livro. “A maior história de vingança de todos os tempos” é reduzida ao mais vulgar, superficial nível de sua existência – pele e ossos, um romance melodramático e caricaturesco de folhetim.
Um filme de ação e super-heróis de Dumas
O Edmond Dantès de Niney é quase um super-herói. Ele é expert em combate mano-a-mano, passa por um training montage que não faz o menor sentido – aparentemente, o Castelo de If era o inferno, e mesmo assim ele tinha força, energia, espaço e liberdade suficientes para treinar combate com um Abade Faria -, deixa sua insígnia como marca após dar uma surra em vários “durões” numa esquina (durões contratados por ele, deixemos isso bem claro), está sempre usando um casacão preto quase reminiscente de uma capa, tem em sua casa (altamente produzida por CGI) um armário que se torna um alvo de tiro quando ele aperta um botão, e usa máscaras e próteses de látex com uma proficiência quase cômica.
Em muitos aspectos, o filme lembra a série francesa da Netflix “Lupin”, que adapta os clássicos de Arsene Lupin, o Ladrão de Casaca, para a modernidade. Só que “Lupin” é uma adaptação moderna, não direta – a série se desenvolve ao redor de um fã dos livros que comete crimes inspirados neles no século XXI, e não adapta diretamente nenhuma história dos livros com o personagem Arsene Lupin – e, acima de tudo, uma que não se leva muito a sério.
Ela é excelente para o que se propõe, com todos os seus absurdos e momentos de comédia. Se o novo Monte Cristo seguisse a mesma abordagem, a situação seria inteiramente diferente – essa poderia ser uma adaptação mais juvenil, divertida e inteligente do maravilhoso livro de Dumas – mas não é o que acontece. O filme quer ser levado a sério, e quer ser uma adaptação direta do livro de Dumas, e por isso falha.
O filme é uma abordagem moderna, juvenil, quase Marvel Cinematic Universe – sem se considerar como tal, a principal fonte de ridículo em toda essa farsa – de um clássico que merece muito mais do que isso. Ele acrescenta cenas de ação totalmente desnecessárias – incluindo cenas de Monte Cristo lutando corpo-a-corpo contra vários homens no meio da rua e o famigerado duelo (no caso dessa adaptação específica, só um não era suficiente; há dois duelos, um com pistolas e outro com espadas, inventados para o filme por motivo nenhum além de seguir a linha de seus predecessores igualmente medíocres) que metade das adaptações de Monte Cristo insiste em incluir, apesar da escolha deliberada de Dumas de subverter as expectativas de seu gênero e propositalmente evitar o clichê, e para compensar corta baldes e baldes de nuance e delicadeza narrativa.
É evidente que é impossível esperar uma adaptação perfeita de um clássico de mais de 1.500 páginas em um filme, ainda que esse filme tenha quase três horas de duração. Mesmo os maiores clássicos do cinema, com todo o seu brilhantismo, não o conseguiram – E O Vento Levou…, Ben-Hur, etc. Ainda assim, esses mesmos clássicos – e outros mais modernos, como Os Miseráveis de 2012, por exemplo (falando nele, Victor Hugo está há décadas sem dormir no Panteão por que seu vizinho de túmulo, Dumas, está se debatendo ininterruptamente em seu próprio caixão desde no mínimo 2002, quando a adaptação de Monte Cristo com Jim Caviziel chegou aos cinemas. Por favor, alguém o ajude.) – já provaram que é possível fazer uma boa adaptação de livros magistrais, complexos e, é claro, imensos em um espaço de tempo relativamente curto. O segredo está em preservar aquilo que realmente interessa – e é aí que o Monte Cristo com Niney falha.
Edmond Dantès, um protagonista incompreendido
Em primeiro lugar, falemos do homem do momento: Edmond Dantès, detto Conde de Monte Cristo. O que foi feito do protagonista de Dumas foi uma barbaridade. O problema não está exatamente em Niney – embora ele também não ajude – mas em sua caracterização.
As roupas, o envelhecimento risível, o cabelo desarranjado, tudo isso contrasta tão ridiculamente com o Monte Cristo elegante, refinado, sofisticado e absolutamente encantador na mesma medida que é arrogante de Dumas, que tomou conta da sociedade parisiense no espaço de alguns poucos meses, fica difícil acreditar que o personagem seja a mesma pessoa. Seus métodos são igualmente crassos, e infinitamente menos sofisticados que os de sua contraparte literária, e por isso, a personagem sofre.
Um excelente exemplo dessa trágica desconstrução de personagem é o que acontece para Monte Cristo salvar Albert. Por algum motivo inexplicável – nem mesmo o filme mais curto e, em tese, menos preocupado com detalhes de 2002, comete essa gafe – a narrativa italiana é completamente omitida. Assim, para que Monte Cristo tenha uma desculpa para se aproximar de Albert, ele mesmo forja um roubo, contratando homens para isso, só para ter a oportunidade de bater neles todos no meio da rua e “salvar a vida” do rapaz.
Uma significativa diferença em relação ao bem estruturado plano descrito no livro, durante o qual Monte Cristo, ao longo de vários dias, faz amizade e exibe sua riqueza imensa para Albert e seu amigo Franz D’Epinay durante o Carnaval romano, organizando para que o jovem fosse eventualmente sequestrado, para depois negociar sua soltura com Luigi Vampa, o temido bandido italiano responsável pelo crime – e devedor de Monte Cristo, que utilizou sua influência com o papa para salvar a vida de um de seus homens – por dinheiro nenhum, garantindo assim que os dois rapazes retornaram para Paris não apenas gratos e dispostos a fazer qualquer coisa pelo novo amigo, mas também impressionados e prontos para espalhar por toda a alta sociedade francesa histórias fabulosas sobre a lendária riqueza, a coragem, a fleuma e o poder de um homem que tem tanto trânsito no Vaticano quanto no submundo do crime europeu.
O conde de Monte Cristo de Dumas jamais contrataria homens só para bater neles. Isso chega a ser humilhante para um homem que prezava com um senso quase irritante de autoimportância por suas habilidades quase sobre-humanas de fazer, bem, tudo. Nas ocasiões em que o Conde enfrenta alguém, ele os enfrenta, ponto – e ganha por mérito próprio. Mas acima de tudo, o Monte Cristo de Dumas jamais se prestaria a lutar contra “durões” em uma esquina, mesmo que a luta fosse comprada. Ele resolve seus problemas com telegramas, dinheiro e pistolas, não com bartitsu. Ele não encosta um dedo sequer em ninguém, e é mais efetivo e letal por isso.
O acréscimo de violência em nome da ação é um problema comum às adaptações de Monte Cristo. O livro é comumente classificado como um “romance de capa e espada” – e, embora o seja, em certa medida, é uma classificação simplória, já que Dumas é deliberado em fugir de certos clichês e tropos comuns do gênero.
Ele cria todo o cenário do duelo (um item quase obrigatório a ser incluído nesse tipo de romance no século XIX), por exemplo, mas propositalmente não deixa que ocorra, subvertendo a expectativa de seus leitores e tornando sua história mais sofisticada por isso – já que a resolução para o duelo ocorre de maneira surpreendentemente bonita e emocionalmente profunda, que faz imensa diferença não apenas no desenvolvimento dos arcos de personagens como na narrativa como um todo -, e é uma pena que adaptadores “corrijam” essa percebida “falha” em se alinhar com as expectativas literárias de sua suposta categoria. Nesse filme, não é diferente: dois duelos, além da risível luta no meio da rua, são acrescentados à história, sempre à custa de narrativas complexas e bem construídas, que no livro envolvem o estado emocional e psicológico dos personagens, e no filme não passam de sequências de ação sem maiores detalhes.
Os vilões de Dumas e as caricaturas adaptadas
Mas se isso fosse tudo, talvez fosse possível salvar o filme. Mas, é claro, não é. Como é de praxe em adaptações medíocres – Sim, 2002, estou falando diretamente com você –, os vilões de Monte Cristo são totalmente descaracterizados num nível de exagero tão crasso que chega a ser infantil. Por falta de tempo, sem dúvida, mas igualmente por falta de imaginação e compreensão do texto, Villefort, Danglars e Mondego são transformados em pessoas tão desprovidas de qualquer característica humana que é quase possível ouvir o eco de uma risada maligna toda vez que um deles entra na sala. Essa autora mais ou menos esperava que um deles cofiasse os bigodes malignamente enquanto fazia um discurso sobre seu plano infalível para dominar o mundo, a la cientista louco de filme infantil – o Dr. Heinz Doofenshmirtz, vilão cômico do desenho animado do Disney Channel “Phineas e Ferb”, é francamente uma personagem escrita de maneira mais inteligente e menos estereotípica.
Os personagens de Dumas são homens que podem ser encontrados em qualquer salão da alta sociedade nos dias de hoje, como poderiam ter sido em sua época: homens de família, com diferentes graus de amor por seus filhos e esposa e envolvimento na vida doméstica; homens de negócios, com diferentes graus de competência e probidade; homens bem-quistos, muito agradáveis e por vezes até simpáticos demais. Homens, enfim, comuns, porém com mais de um segredo terrível. Homens que têm suas qualidades, mas sucumbem às suas fraquezas – ambição, ganância, paixão, bajulação, instintos de sobrevivência e autopreservação – por demais vezes. São essas as nuances que os tornam tão reais, tão críveis e tão desprezíveis, sem que, em um momento ou outro, deixemos de sentir algum grau de simpatia por um ou dois deles. São essas as nuances tão indignamente atiradas pela janela, tal qual os cadáveres do Castelo de If, por essa produção.
Comecemos por Fernand. Seguindo o padrão estabelecido em outras ocasiões – famosamente pelo filme de 2002 com Caviziel -, o primo invejoso de Mercedes não pode ser apenas isso; ele precisa ser o melhor amigo de Dantès. Como, afinal, vamos saber que ele é uma pessoa desprezível se ele não trair seu melhor amigo por ciúmes e ambição? Como, oh meu Deus, poderemos não gostar de um vilão se ele não for inteira e irremediavelmente isso – desprezível? E ele é rico, é claro. Ninguém permita que o Mondego pobre e ambicioso escrito por Dumas, disposto a fazer de tudo para subir na carreira, apareça numa tela de cinema. Ele precisa ser um nobre rico e, não nos esqueçamos, desprezível desde o início, ou não serve. Tão caricato ele é que – e aqui a autora assegura não estar brincando, apesar do que parece – ele usa um tapa-olho. Existe algo mais apropriado para um vilão de desenho animado do que um tapa olho?
Ele e Dantès tem um enfrentamento no final do filme – um duelo de espadas que nunca acontece na contraparte literária da história, e que não tem nada da dignidade de Dumas. O Monte Cristo do autor jamais cruza espadas com Morcef, ele é calculista demais para isso. Sua vingança é muito mais sofisticada, e termina com o próprio Morcef cometendo suicídio – covarde demais, e talvez perturbado demais, para conseguir sequer pensar em levar um duelo com o recém-revelado Edmond Dantès adiante. Muito superior, sem dúvidas, a tola demonstração da piedade de Monte Cristo quando ele derrota seu inimigo e o deixa viver, algo simultaneamente fora da personagem e sem sentido para a construção da narrativa como ela se deu.
Danglars é feito igualmente exagerado em sua vilania, o que é uma pena, pois ele já era brilhantemente desprezível e, francamente, nojento no original, e não precisava desses acréscimos – mas os recebe, é claro. No livro de Dumas, o personagem era um contador que tinha a ambição de se tornar capitão do Pharaon, e que fica enciumado quando o jovem Primeiro Imediato, Dantès, é promovido para o cargo. Após a prisão de Dantès, recebe a promoção, e eventualmente deixa a vida no mar para se tornar um banqueiro corrupto e avaro, que coloca o dinheiro acima de tudo – incluindo sua família. No filme, ele já é capitão, e é demovido do cargo, que é entregue para Dantès, após se recusar a salvar uma mulher que estava se afogando, coisa que Dantès faz em seu lugar.
Confira o trailer do filme:
Ele sobe na vida se tornando traficante de escravos. Ele é diretamente responsável pela destruição da família Morrel, sabotando seus navios – a situação dos Morrel, no livro, é simplesmente um natural caso de má-sorte, com seus navios naufragando ao longo dos anos – e levando Morrel a uma morte na pobreza – algo que, mais uma vez, não acontece, pois no livro Dantès é capaz de salvar seu amigo do suicídio in extremis, uma ocasião que, inclusive, serve para mostrar o lado bondoso do protagonista, que faz questão de recompensar aqueles que lhe foram bons anos antes de punir aqueles que lhe fizeram mal, sem jamais se denunciar como o autor de seus bons atos. Danglars chega, enfim, a efetivamente admitir com orgulho que é um bruto já em suas primeiras falas – caso o resto todo não seja suficiente para que a audiência o perceba, é claro.
O Danglars de Dumas é um dos mais insuportáveis e realistas vilões de sua obra, exatamente por não passar de um homem extremamente comum – corrupto, covarde, invejoso, ganancioso, egoísta, afetado, untuoso, adulador, ridículo em sua pequenez mesquinha. Ele não tinha motivo legítimo para se sentir prejudicado por Dantès – o cargo de capitão nunca foi dele, e na realidade fazia mais sentido como promoção natural para o Primeiro Imediato do que para o contador, de qualquer forma. Ele faz sua riqueza como incontáveis homens antes dele – roubando dos pobres e dos cofres públicos. Ele se vende para homens mais ricos que ele – escancarando as portas de sua casa para o bilionário Conde de Monte Cristo sem pensar duas vezes, quando instantes antes tinha tentado diminuí-lo, sem saber de sua quantidade absurda de dinheiro, e aceitando o Príncipe Andrea Cavalcanti como genro sem sequer se dar ao trabalho de checar qualquer coisa sobre a vida dele, tudo em nome do título de príncipe –, praticamente leiloa a filha para o comprador – leia-se, futuro marido – disposto a pagar mais, e aceita o humilhante caso de sua mulher com o jornalista Lucien Debray, que sai em público com a esposa e filha de Danglars e visita a amante na casa do marido, com ele presente, em troca de informações privilegiadas da bolsa de valores. Não havia nenhuma necessidade de mudar um vilão tão brilhante exatamente por ser tão bom em gerar ojeriza. Ele já era suficientemente terrível em sua própria mesquinharia.
E o que dizer de Villefort, dos três vilões de Monte Cristo, o mais complexo de todos? O Villefort de Dumas não é, a princípio, um homem mau; só ambicioso e inseguro. Ele sabe que Dantès é inocente e está prestes a soltá-lo; porém, ao descobrir que a carta que foi usada para incriminar o rapaz tinha sido escrita por seu pai, e que sua carreira pode ser totalmente arruinada por isso, ele decide mantê-lo preso. Essa história simples, mas perfeitamente plausível e razoável, é substituída por uma das maiores mudanças do filme de 2024 – o pai de Villefort, Noitier, é substituído por sua irmã, Angele (inexistente na narrativa de Dumas), que Dantès salva de se afogar, e que carregava uma carta para Napoleão. Não apenas Villefort prende o homem que salvou a vida de sua irmã, como é violento com ela, enforcando-a até ela estar quase morta, e depois a entregando para Danglars transformar em uma prostituta-escrava. Anos depois, Monte Cristo a encontra destruída por anos de servidão sexual, e ela morre logo em seguida.
O Villefort do filme de 2024 é tão caricaturesco que sequer lhe foi dada a família que ele tem no livro – um homem mau não pode, ao que tudo indica, ter carinho pelos filhos, cuidar do pai ou ter uma esposa. Isso não apenas elimina uma das mais inusitadas linhas narrativas do livro – a segunda esposa de Villefort, Heloise, ser uma serial killer que está matando todos os membros da família para garantir que a herança de Villefort seja inteiramente de seu filho, Edouard – como diminui consideravelmente a complexidade da vingança engendrada por Monte Cristo, tanto no sentido de suas ações em si quanto em termos da profundidade moral e emocional dela tanto para Villefort quanto para o próprio Monte Cristo.
O fato de ele morrer é trágico – afinal de contas, a vingança do livro é deliciosa exatamente porque Villefort fica vivo e é forçado a conviver com todos os seus piores pesadelos se tornando realidade de uma vez. Tudo isso, porém, é sacrificado por uma morte simples e um vilão sem um pingo de humanidade – e, caso isso não fosse suficiente, o diretor faz questão de colocar corpos enforcados apodrecendo na frente do escritório de Villefort, caso, mais uma vez, sua vilania não fosse óbvia.
Essa destruição das personagens é triste de assistir, pois os três são alguns dos melhores, mais reais e humanos indivíduos já construídos pelo autor. Os vilões de Dumas são homens reais, e por isso são desprezíveis; pois são homens como os que podemos encontrar em diversos setores da sociedade, na vida real, hoje, como podíamos encontrar antes. Porque não são monstros, só pessoas corruptas, mesquinhas e covardes. Vilões da vida real.
Quantos traficantes de escravos, cafetões das próprias irmãs e forjadores da prisão e desgraça de melhores amigos estavam andando por aí na França do século XIX? Um certo número, sem dúvida, mas nem de longe comparável ao número de políticos, banqueiros, militares e funcionários públicos que desviam dinheiro público, lançam condenações compradas por interesses próprios, cometem crimes que ficam escondidos no exterior, se livram dos filhos que tem com as amantes, forjam carreiras inteiras em adulação e viradas de casaca políticas no momento justo, e pisam na probidade, na justiça, na honestidade e, acima de tudo, em pobres inocentes sem nome como no pó sob seus sapatos. Quantos desses existiam na França de Dumas? Quantos desses hoje?
Não são eles suficientemente merecedores do ódio de uma audiência?
Heroísmo adaptativo, e personagens preto no branco
A alergia da adaptação à nuance e ao realismo do equilíbrio entre o bem e o mal, porém, também funciona em reverso: pelo menos duas personagens ruins do livro de Dumas são redimidos de maneira totalmente inexplicável no filme, se tornando figuras heroicas e admiráveis que deixariam o próprio Dumas surpreso. São elas Caderrouse e Benedetto.
De Caderrouse, não há muito o que dizer; basta pontuar que, sendo no livro um homem tão ganancioso que mata sua esposa – e encontra sua própria morte – por dinheiro (mas que, apesar disso, sente remorso por seu papel de observador passivo na prisão do inocente Dantès), se torna no filme um homem que é presenteado com um diamante e o recusa em nome de seus princípios morais.
Já Benedetto, também conhecido como Príncipe Andrea Cavalcanti, é um caso a parte: o personagem do livro é, efetivamente, um psicopata ou coisa que o valha, sendo não apenas um criminoso terrível, mas estando disposto, também, a torturar sua mãe (adotiva) e a matar seu suposto pai (ele acredita ser filho ilegítimo de Monte Cristo, a quem tenta assassinar. Eventualmente, descobre-se filho de Villefort). Milhões de léguas de distância do Benedetto do filme de 2024 – um herói progressista disposto a casar com uma mulher lésbica para ajudá-la a esconder seu interesse por mulheres, gentil, educado, e que vive como um filho adotivo de Monte Cristo, que nutre por ele grande afeição (significativamente diferente da opinião do Monte Cristo de Dumas sobre Benedetto, que nas palavras do próprio o enoja).
A morte de Benedetto – inexistente no livro – vingando-se de seu pai, Villefort, é um dos momentos mais tristes e, em teoria, emocionalmente carregados do filme, e é o que faz Monte Cristo duvidar da justiça de suas ações. Ela tomou o lugar da morte de Edouard de Villefort, o filho pequeno de Villefort. E, é claro, não faz sentido. Afinal, Monte Cristo começa a ter dúvidas após ver sua vingança resultar na morte de um inocente – uma criança de sete anos que não tinha nenhuma relação com os crimes de seu pai e nenhuma parte em seu plano. Como é possível transferir esse mesmo grau de culpa pela morte de um rapaz que tinha tanto interesse na vingança quanto ele – afinal, Benedetto no filme também queria acabar com Villefort, e morre fazendo-o – e que participou voluntária e entusiasticamente de seu plano? A resposta é “impossível”. A escolha rende boa parte das dúvidas de Dantès sem sentido ou, no mínimo, fora de proporção, e elimina algumas das cenas mais dramáticas e momentos mais significativos da narrativa em seu caminho.
A providência divina, os filhos perdidos e a ira de Deus:
Logo no início de sua vingança no filme de 2024, Dantès vai a uma Igreja e, enraivecido, diz a Jesus que, de agora em diante, ele fará aquilo que Deus claramente não estava disposto a fazer – servir justiça. Embora dramática – reminiscente do Drácula de Bram Stoker com Gary Oldman, até -, a cena mais uma vez contraria tudo aquilo que Dumas escreve em seu livro. O Conde de Monte Cristo literário não cometeria esse tipo de blasfêmia não, necessariamente por imensa fé e medo de Deus, mas porque ele vê a coisa de maneira totalmente diferente.
Um dos principais eixos temáticos de “O Conde de Monte Cristo” de Dumas é o Dies Irae, a ira divina. Isto por que o próprio conde se coloca como um agente da providência divina, e justifica todas as suas ações como sendo parte da vontade de Deus. Ele entende que foi resgatado de If e presenteado com sua fabulosa fortuna para servir como um agente divino que dispensa justiça como o Deus do Velho Testamento, e que é a vontade de Deus que sua vingança seja realizada. Ele jamais “discutiria” com Jesus por sua falta de ação, pois ele entende que tudo o que aconteceu para que ele se tornasse um conde foi sua ação. Ele não está agindo por que Deus não o fez; ele está agindo por que Deus o compele. E esse aspecto é fundamental não apenas para a integridade simbólica e temática da narrativa construída por Dumas, como também para o aspecto psicológico do protagonista, que se sente perfeitamente justificado em sua noção de justiça e pauta muitas de suas ações nesse raciocínio.
A esse apagamento das temáticas ligadas ao Velho Testamento – que é explorado no livro, diga-se de passagem, através de uma abordagem muito mais filosófica do que religiosa – estão conectados também vários dos sumiços de personagens extremamente relevantes para a história, mas que o filme corta por completo: Maximilien Morrel, Luigi Vampa, Bertuccio, Edouard de Villefort, Heloise de Villefort, o senhor Noitier, Hermine Danglars, Valentine de Villefort, Franz D’Epinay, além, é claro, da modificação de papéis de personagens como Haydée, Benedetto e Caderrousse. Esses sumiços tem consequências gigantescas para o enredo, que tem que ser desenvolvido de maneira totalmente diferente para acomodar a falta de certos personagens, já que Dumas estruturou sua narrativa de maneira que até os mais insignificantes eventos e minúsculos personagens sejam fundamentais para o funcionamento da história.
É importante perceber que quase todos os personagens citados são membros das famílias de certos personagens. Há uma série de implicações para cada um desses cortes de maneira individual, mas como exemplo coletivo, nada melhor do que o eixo Villefort da narrativa: afinal, sem Heloise de Villefort, Hermine Danglars, Noitier, Edouard, Valentine e Morrel, como se vinga Monte Cristo de Gerard de Villefort? O filme de 2024 resolve que com uma morte pelas mãos de Benedetto, algo razoavelmente melhor do que sua morte sem sentido algum no filme de 2002, mas uma solução simplória quando comparada à sofisticação e ao verdadeiro drama familiar que o Edmond de Dumas engendra, envolvendo venenos, assassinatos em série, uma falsa morte, um filho fora do casamento, um criminoso italiano, um bebê enterrado vivo e um julgamento público de alto calibre, resultando no enlouquecimento do juiz, que começa a cavar seu quintal em busca do filho que teria enterrado duas décadas antes, tendo sua reputação – aquilo que ele condenou Dantès para proteger – arruinada e sua família destroçada.
De maneira semelhante, o que leva o Conde de Monte Cristo a refletir sobre a justiça de sua vingança se não existe ali o pequeno Edouard? Haydée, diz a adaptação, pois a princesa lembra o conde do preço de sua vingança após a morte do reformado Benedetto, por quem Monte Cristo e ela própria nutrem grande atenção. Já foi comentado anteriormente o motivo de Benedetto como catalisador desse drama particular não funcionar, e agora resta falar brevemente da implicação disso para a personagem de Haydée.
Haydée é uma personagem frequentemente mal-compreendida, e dessa vez não foi diferente. Que ela apareça no filme já é uma grande vitória – a maior parte das adaptações sequer se dá a esse trabalho –, mas isso não quer dizer que sua personagem não tenha sido, como era de se esperar, destruída. É fácil pensar em Haydée como um mero acessório, um detalhe a mais na calculada identidade criada por Edmond Dantès para encantar Paris como um aristocrata milionário, excêntrico e orientalista – e aí reside um dos grandes erros de interpretação da obra. Haydée não só tem um papel importantíssimo na trama de vingança que o Conde concebeu por uma década, mas a vingança em questão também é dela: um dos homens que acusou injustamente Dantès, levando-o à prisão em If, para casar-se com sua então noiva, Mercedes, é o mesmo que traiu a confiança de seu pai, o matou, e vendeu Haydée e sua mãe como escravas – Fernand Mondego, o Conde de Morcef.
Haydée é tão vingativa quanto Monte Cristo. Ela tem raiva. Ela quer retribuição, é dissimulada, e é um par à altura do Conde em todos os sentidos, parte de uma dupla maquiavélica que passou anos planejando vingança. Haydée não é simplesmente um joguete no tabuleiro de Monte Cristo, e muito menos a voz da consciência em seu ombro: por tudo o que sabemos, ela é sua sócia no jogo, e faz mais para incentivá-lo do que para detê-lo. Como ele, ela sofreu imensamente nas mãos de seus inimigos, e como ele tem profundo desejo por vingança. Há, porém, uma diferença fundamental entre os dois: ao contrário de Edmond, Haydée parece imune a qualquer tipo de remorso.
Esse é o aspecto fundamental do relacionamento dos dois – um aspecto tristemente subdesenvolvido da dinâmica entre o Conde e a Princesa em várias adaptações, e efetivamente ignorado em 2024. Haydée pode ser uma fonte de paz para Monte Cristo, mas certamente não é um entorpecente. Ela não o ajuda a esquecer dos demônios que o assombram, pois sua presença na vida dele é inteiramente condicionada à existência desses demônios. Ele jamais a teria conhecido se não estivesse buscando maneiras de desgraçar o homem que o colocou na prisão. Haydée não é esquecimento: ela é um lembrete dos horrores cometidos por aqueles a quem Edmond destruiu, e de que ele foi justificado em sua ira. E, ao contrário dele, Haydée parece estar plenamente em paz e feliz com tudo o que se passou.
Ela não tem dúvidas – e talvez isso ajude Edmond a sentir-se em paz. E, no fim das contas, é bem provável que ela seja, também, a única pessoa em toda a narrativa de Dumas que consegue tudo o que quer. Tirar isso dela – torná-la uma jovem apaixonada por Albert, ignorando totalmente sua função narrativa como par romântico de Dantès, e fazer dela um porta-voz do remorso e da moralidade no ombro do Conde – é diminuir e tirar a complexidade de uma das brilhantes e esquecidas personagens femininas de Dumas, que mais uma vez são relegadas a clichês de bondade e honra.
Romance de folhetim: Os Cavaleiros Templários e o romance proibido da princesa grega com o filho do homem que matou seu pai
O acréscimo de melodrama não deixa nem os objetos inanimados intocados: o tesouro de Monte Cristo ganha uma nova história de origem, tão dramática que talvez merecesse um livro próprio. Ele passa pelas mãos dos Bórgias, do tão famoso quanto cruel rei francês Felipe IV, O Belo, e dos Cavaleiros Templários – dos quais o abade Faria é o último, diga-se de passagem (Nesse momento, Dumas começou a convulsionar no caixão. Émile Zola, seu outro vizinho de sepultura que também está sendo impedido de dormir, acusa o roteirista que decidiu que isso era uma boa ideia) – antes de chegar às mãos do marinheiro de Marselha. Falando em Faria, ele morre de ferimentos fatais após ser esmagado numa tentativa de fuga – muito mais dramático e menos plausível do que a morte do Faria dos livros, devido a uma condição de saúde que corre em sua família e parece ser algo como epilepsia.
O já mencionado romance entre Albert e Haydée – que não faz o menor sentido narrativo ou temático – é outro desses acréscimos que tornam o livro um dramalhão novelesco por motivo nenhum. Como acontece? Não sabemos; o filme não se dá ao trabalho de desenvolver bem esse aspecto da narrativa, certamente não bem o suficiente para justificar tal absurdo (por favor, pensem em Hugo e Zola). Tudo o que sabemos é que Albert e Haydée decidem fugir juntos, perdidos de amor, embora o pai de Albert tenha matado o pai de Haydée, e Haydée tenha sido fundamental na desgraça do pai – e da família – de Albert. Monte Cristo a obriga a contar isso para ele, é claro, pois o que seria desse romance a la Romeu e Julieta se o drama não fosse tornado explícito para toda a audiência?
Que tenha sido uma história mal contada já é ruim, mas o verdadeiro problema aqui é o que isso significa para os arcos de ambos os personagens. A função literária de Haydée é, como já estabelecemos, ser o par perfeito de Monte Cristo; a de Albert é ser um jovem dândi que se desenvolve e se torna um homem melhor através da influência, destrutiva como foi, do Conde, ao abandonar o dinheiro e o nome da família e renunciar a qualquer prazer para se alistar no exército francês e ir lutar na África como um homem comum, construindo seu novo nome, reputação e riqueza do zero para expiar os crimes de seu pai – embora não precisasse fazê-lo. Ele não precisa de uma amante, precisa de desenvolvimento pessoal.
Mas, é claro, isso é um dramalhão de novela, nos lembra o filme de 2024 – e toda novela precisa de um casamento.
Esperar e… não ter esperança?
O final do filme de 2024 é insatisfatório para todas as audiências possíveis. Por um lado, aqueles que não leram ou pouco se importam com a obra de Dumas esperam, de maneira geral, que Monte Cristo termine seus dias casado com Mercedes, o final popularizado por muitas adaptações, incluindo, mais celebremente, a de 2002. Um final que é exatamente o oposto de tudo o que Dumas quis dizer com seu livro, diga-se de passagem.
Aqueles que leram o livro e se interessam verdadeiramente pela mensagem do autor, porém, esperam ver o final como escrito por ele: com Monte Cristo vingado, satisfeito, mas sentindo algum peso de culpa, navegando para o oriente para terminar seus dias vivendo como ama na companhia de Haydée. Não por que esse seja um final feliz açucarado – pelo contrário, da maneira como foi escrito, é bastante temperado por uma boa dose de amargura – mas porque é o final correto.
No final do “”O Conde de Monte Cristo” de 2024, Monte Cristo está sozinho. Conseguiu sua vingança, mas perdeu pessoas com quem se importava, sofreu imensamente e, acima de tudo, tem suas dúvidas, por mais bem escondidas por trás de uma fachada estoica que estejam, sobre a validade de suas ações, instiladas nele por Haydée de Janina, pela morte de Benedetto, e talvez até por sua escolha de poupar a vida de Fernand. Ele deixa Paris e vai embora, deixando uma carta para trás endereçada para Mercedes. Um final duro, que quase parece indicar que a vingança não vale a pena – um ponto já feito milhares de vezes antes, e que seria razoável se o filme inteiro não tivesse feito tanta questão de tornar seus vilões tão caricaturescos e seu protagonista tão “super-heroico” em sua busca por retribuição que chega a ser incoerente e, acima de tudo, se o próprio Dumas não tivesse escrito um livro que diz exatamente o contrário.
O Dantès de Dumas chega a flertar com o arrependimento. Não passa disso: ele é reafirmado em sua vingança uma vez após a outra, e recebe até mesmo uma “mensagem póstuma” de seu mentor, Faria, que diz “Você irá arrancar os dentes dos dragões, e irá esmagar os leões sob seus pés, diz o Senhor”. Se Dumas tivesse desenhado, não teria sido tão explícito. O Edmond de Dumas está justificado em sua vingança, se sente como tal, e a narrativa o vê como tal. Colocar dúvidas sobre isso pode ser uma discussão filosófica das mais interessantes, mas não serve para uma adaptação do trabalho.
O problema aqui, como em muitos outros casos, é a simples falta de compreensão da intenção do autor. “O Conde de Monte Cristo” se tornou tão conhecido como “a maior história de vingança de todos os tempos” que, para muitos, foi reduzido a isso de fato. Não se deve compreender mal: Monte Cristo é, de fato, uma história de vingança, e possivelmente a mais essencial de todas elas na medida em que influenciou definitivamente o gênero como um todo, incluindo suas imitações, como Ben-Hur, e suas subversões, como Os Miseráveis. Mas o ponto da história, para Dumas, nunca foi a vingança. Essa é a parte divertida, é claro. Quem não sente satisfação pessoal quando os homens que mandaram um inocente para a prisão para garantirem seu amor, seu dinheiro e sua reputação acabam morto, falido e desgraçado, respectivamente? São essas as narrativas que mantiveram a história, publicada em capítulos ao longo de um ano em um jornal, interessante para o público por tanto tempo. Mas quando chega-se bem no fim – naqueles derradeiros capítulos depois que tudo está acabado – é que se percebe que o autor tinha algo mais importante para dizer. Essa não é somente uma história de vingança. É a história da queda e ascensão de um homem que era jovem, e não é mais. Que era inocente, e não é mais. Que era bom, e que não tem mais certeza se ainda o é.
Isso o filme de 2024 entende, um certo nível de avanço em relação aos finais extremamente adocicados promovidos por filmes que de fato perdem qualquer noção de dimensão da história e, como o filme com Caviziel, dão a Dantès um final de contos de fadas. Isso é de fato impensável. Quando o Conde retorna à Ilha de Monte Cristo pela última vez, dois homens e um menino estão mortos, outro está louco, e tantos outros, com seus filhos e suas mulheres, estão falidos, presos ou, de uma maneira ou de outra, arruinados, e ele está vingado. E, ainda assim, ele não está plenamente feliz. Edmond Dantès foi um rapaz bom, mas Edmond Dantès não existe mais. Ele envelheceu décadas em anos. Ele está exausto, se tornou cínico, calculista, frio, amargo. Quatorze anos de sua vida lhe foram tirados, aqueles de quem ele mais gostava morreram ou estão além de seu alcance e de qualquer afeição que poderia ter-lhe sobrado. Ele já sofreu muito. E não há vingança ou fortuna no mundo que possa curar sua alma, não por completo. E é assim que tem que ser. E é isso que o filme de 2024 tenta fazer, o que, a princípio, poderia ser bom. O problema é que sua compreensão da história para aqui, e deixa de ver o recado muito maior e mais importante que Dumas escreveu tão brilhantemente.
O grande erro de adaptadores de Monte Cristo ao longo da história dessas adaptações tem sido dar a ele um final feliz tão açucarado que há de incomodar pelo menos um pouco qualquer pessoa que tenha prestado um pouco de atenção, porque não é verdadeiro. Esse filme tenta corrigir isso – e o seu grande erro é ir demais para o outro lado. Pois, apesar de tudo isso, o final de “O Conde de Monte Cristo” de Dumas ainda assim é um final feliz – só não enjoativo.
Quando Edmond Dantès diz “Não existe felicidade nem infelicidade neste mundo, existe apenas a comparação de um estado com o outro e mais nada. Só aquele que experimentou o extremo infortúnio se encontra apto a experimentar a extrema felicidade. É necessário ter querido morrer para saber como é bom viver” ele resume todo o propósito de sua história, e todas as intenções de Dumas. Monte Cristo não é uma história sobre recuperar aquilo que um dia lhe pertenceu; é uma história sobre o efeito do infortúnio extremo na vida de um homem, e sobre como é possível sair do fundo para chegar ao topo. É uma história sobre resiliência. Mas, acima de tudo, é uma história sobre mudança. O homem que sobreviveu à If não é o mesmo que foi preso lá catorze anos antes. Ele é muito mais rico, muito mais curto, mais ambicioso, mais sofisticado. Também é muito mais cínico, calejado e frio. Teria sido melhor ter sido para sempre o marinheiro de Marselha, sem jamais passar por tanto sofrimento, mas sem conhecer, também, as muitas possibilidades que o tesouro e o conhecimento do Abade Faria possibilitaram? Ou valeram a pena os anos de dor pelas décadas de maravilhas? O leitor pode tirar suas próprias conclusões, mas o Conde não deixa nada em aberto: ele nos dá sua resposta, e ela é um alto e ressonante “valeu a pena, sim”.
Nas páginas finais de “O Conde de Monte Cristo”, apesar de todo o seu sofrimento, todas as suas dúvidas e a sua dor, o conde não apenas se sente vindicado, como também tem, surpreendentemente, tudo aquilo que Edmond Dantès um dia quis e que lhe foi arrancado: ele enriqueceu, casou-se com uma mulher que ama e tornou-se capitão. O que é seu tarda – tarda, de fato, duas décadas e meia – mas não falha. É um final feliz. Com seu lado amargo, com seus aspectos mais sombrios, mas sem dúvida feliz. Pois é isso que a história quer dizer. O final idealizado por Dumas faz jus a tudo aquilo que O Conde de Monte Cristo deve ser: uma história sobre superação e recomeços; sobre como a vida por vezes toma caminhas totalmente distintos daqueles que esperávamos, mas que o que é nosso tem uma maneira de nos encontrar; sobre como as adversidades por vezes trazem algo melhor do que tudo que poderíamos imaginar; sobre como a felicidade não apenas pode ser encontrada após o sofrimento, mas com frequência é mais doce então. E, sobretudo, uma história sobre esperança. E é isso que “O Conde de Monte Cristo” com Niney não consegue entender.
Nem tudo é ruim:
Para não ser injusta, há alguns méritos da produção que precisam ser reconhecidos: em primeiro lugar, a trilha sonora está excelente. “Le Tresor”, particularmente, é uma bela composição, e a música de Haydée também. Boa música por si só é capaz de elevar qualquer coisa, mesmo as mais medíocres, imediatamente, e nisso O Conde de Monte Cristo fez muito bem.
Em segundo lugar, o filme tem qualidade técnica. A estética tem muita influência da abordagem mais moderna e quase, mais uma vez, Marvel Cinematic Universe que o filme inteiro parece emprestar, portanto não é, na opinião da autora, a mais apropriada para contar a história de Monte Cristo, mas nem por isso deixa de ser bem feita.
O filme carrega ligeiramente mais semelhança com a obra original de Dumas do que seu antecessor de 2002, mas ainda deixa muito a desejar nessa frente, e não se compara, em termos de fidelidade, a outras adaptações anteriores, também muito mudadas, mas ainda um tanto melhores do que esta. É um mérito, porém, que Monte Cristo tenha tido seu final mais ou menos preservado – ao menos ele não se casa com Mercedes. Uma vitória, especialmente no navio afundando que é este filme, nem um pouco desprezível.
Por fim, o maior dos méritos dessa adaptação – o verdadeiro mérito de quase toda adaptação, por pior que seja, na realidade – é a possibilidade de convencer sua audiência a ler a obra original. Se uma pessoa sequer, tendo assistido ao filme com Niney, saia do cinema em direção a uma livraria ou biblioteca e entre em contato com a brilhante narrativa de Dumas, um bem já terá sido atingido no mundo. E isso é o que mais importa.
Uma adaptação para os que não se importam com Dumas:
Talvez fosse possível olhar com mais interesse, para não dizer caridade, para o filme francês se Monte Cristo já tivesse uma adaptação definitiva – uma que de fato conseguisse encapsular a grandeza de Dumas. É o caso de muitos outros clássicos. “O Jardim Secreto” de 2020, apesar de francamente questionável, não dói tanto nos leitores do livro, pois a adaptação praticamente perfeita de 1993 já existe e está consagrada como a versão do livro de Frances Hodgson Burnett. “Orgulho e Preconceito” de 2005 conseguiu seu lugar no imaginário popular e se tornou para muitos – inclusive para essa autora – sua versão preferida da maior das obras de Jane Austen, apesar de seus desvios do material original, em grande parte por que a minissérie de 1995 já tinha adaptado com maestria inegável o livro em todos os seus detalhes. Monte Cristo, infelizmente, ainda não tem nada parecido. Então, uma adaptação que reimagina a história de maneira francamente medíocre, para colocar com delicadeza, ainda deixa um gosto amargo nos leitores – já que a oportunidade para uma adaptação que realmente funcione está aberta, e os que de fato gostam da obra de Dumas seguem insatisfeitos.
Há uma infinidade de outras considerações a serem feitas sobre os muitos problemas de “O Conde de Monte Cristo” de 2024, e poderia falar-se disso por páginas sem fim. São muitas as coisas que faltam: a riqueza estética, vinda diretamente do orientalismo romântico do século XIX, do qual o livro é um forte representante; as tiradas de Monte Cristo, com frequência arrogantes ou politicamente incorretas, mas perfeitas para sua persona; a função que cada um dos filhos dos inimigos do Conde tem na trama, e o relacionamento muito particular de Monte Cristo com cada um deles; a personalidade da protagonista, seu amor por viagens, sua paixão por barcos, sua extravagância, seu humor, seu comportamento; o papel das mulheres de Dumas, brilhantes e tragicamente diminuídas aqui, como sempre o são; o sumiço de boa parte da carga política da história, tão importante para a compreensão das opiniões do autor e da história francesa de maneira geral, e cujo desaparecimento é mais trágico na medida em que o filme, sendo francês, poderia ter feito excelente uso dela; enfim, uma multitude de coisas que poderiam ter sido exploradas e não foram, e que não deveriam ter sido feitas e foram. Mas o traço comum entre essas muitas coisas, que constituem as falhas que dominam esse filme medíocre sobre esse clássico tão grande, é a compreensão. Compreensão da obra, de Dumas, e da história que ele pretendia contar.
Ainda há esperança?
As expectativas de uma grande (embora já estejamos num ponto em que “decente” estará mais do que satisfatório para mim) adaptação de “O Conde de Monte Cristo” estão descansando inteiramente sobre a série da RAI TV com a France Televisions, que deve sair no final de 2024, dirigida pelo vencedor do Palma de Ouro e indicado ao Oscar Bille August, estrelando Sam Claflin como Monte Cristo, e com participação de Jeremy Irons como Faria (veja fotos e um teaser aqui). Até o presente momento, a minissérie parece estar se encaminhando para ser a primeira adaptação apropriada que “O Conde de Monte Cristo” recebe em mais de meio século, e essa autora “deseja ardentemente”, nas palavras de um outro personagem literário clássico anteriormente citado, que já teve a felicidade de ser adaptado apropriadamente mais de uma vez, que ela tenha sucesso nesse objetivo. O Conde de Monte Cristo, e Dumas, merecem.
E, por favor, alguém com um coração caridoso, se apiede de Victor Hugo. Se Dumas continuar se revirando no túmulo vizinho ao dele no Pantheon, o que será de seu descanso eterno?
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