Já sabemos que as guerras são travadas não apenas nos campos de batalha literais, mas também e principalmente num campo de batalha invisível, ainda que vital: o cultural. Quem não sabe sobre a “Política da Boa Vizinhança”, implementada pelo governo estadunidense, que trouxe a América do Sul ainda mais para perto dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e nos legou Zé Carioca como personagem tupiniquim da Disney? Hoje falamos sobre a Guerra Fria e o jazz, com seus intérpretes designados como embaixadores culturais, além do estranho fato de rádios terem sido lançados com paraquedas em regiões de interesse.
Mas Trilha Sonora para um Golpe de Estado, indicado à sua categoria do Oscar 2025, não é um documentário comum sobre a intersecção entre jazz e política. Em vez de narração, cartelas de textos tirados de manchetes de jornais e trechos de livros. Em vez de entrevistas, imagens de arquivo. E não é só na forma que ele é pouco convencional: no conteúdo, opta por contar um período da história do Congo em que a ONU foi vilã.

Começamos a traçar a linha do tempo na Conferência de Bandung, onde o colonialismo – domínio de potências europeias sobre suas colônias na Ásia e sobretudo na África – foi declarado ultrapassado. Algumas nações africanas conquistaram suas independências através de guerras, mas o Congo foi libertado pela Bélgica, ainda que este movimento seja chamado de “uma independência com raízes podres”. O sonho, que começou a ser gestado em Bandung, de dar existência aos Estados Unidos da África logo ruiria.
Enquanto isso, nos Estados Unidos da América, surge uma movimentação para que o músico Dizzy Gillespie se candidate à presidência. Entrando na brincadeira, ele nomeia seu gabinete composto apenas por músicos.
Frantz Fanon, psiquiatra e crítico francês, disse “se a África tem o formato de um revólver, então o Congo é seu gatilho”. Onze dias depois de declarada oficialmente a independência, o Congo perde sua província mais rica, onde se extraíam minérios como o urânio. Logo surge um desentendimento entre presidente e primeiro-ministro, e as forças de paz da ONU no país se intrometem na política, tramando para “neutralizar” o primeiro-ministro Patrice Lumumba.
Não passaram despercebidos pelos meus olhos – e nem devem passar pelos seus – os ataques misóginos a Nina Simone, enviada para a África sem saber que participava de missão da CIA. Em meados dos anos 70, Simone voltaria à África, desta vez para a liberal Libéria, e lá encontraria uma paz passageira que não obteve no seu país natal.
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Da maneira como é inserido no filme, o jazz é apenas isso: uma trilha sonora para um documentário sobre História e política como tantos outros. Teria sido mais interessante um documentário sobre uma das figuras que mais chamou minha atenção: Melba Liston, arranjadora de Dizzy Gillespie. Aliás, ainda são pouco exploradas as trajetórias das mulheres do jazz, bem como a intersecção entre jazz e feminismo. A intersecção entre jazz e política, assunto que prometia ser o foco de Trilha Sonora para um Golpe de Estado, acaba em segundo plano, restando uma metáfora: no jazz a improvisação é muito mais bem-vinda que na política, embora nesta também funcione às vezes, e em ambos há o escalonamento de notas, ritmo, situações e tensões.

Diz-se no documentário que “estudar a História é como sentar num gato”, o que logo se explica como “suas surpresas deixam algumas cicatrizes”. Estudar História muitas vezes é também se pegar indignado com o que aconteceu no passado e temeroso com a possibilidade de voltar a acontecer. Essa é a sensação ao final de Trilha Sonora para um Golpe de Estado, documentário indicado ao Oscar 2025 que nos conta um episódio que, vergonhosamente, fica, em geral, de fora das aulas na escola e do conhecimento do grande público.
Revisado por Mariana Perizzolo
Confira o trailer de Trilha Sonora para um Golpe de Estado:
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