Mudanças históricas e um drama familiar andam lado a lado em O Sequestro do Papa, filme dirigido por Marco Bellocchio, que conta a história real de Edgardo Mortara, que aos seis anos, em meados do século XIX, foi retirado de sua família Judia para ser criado como cristão, sob a tutela do Papa Pio IX, por conta de um batismo realizado à revelia da família. Há elementos emocionais evidentes nessa história, como a luta dos pais de Edgardo em reaver o filho, além dos conflitos políticos e religiosos que se entrelaçam na questão. É fácil entender porquê, originalmente, Steven Spielberg estava se preparando para narrar essa trama, visto que suas obras são cheias de famílias que são afetadas por forças muito maiores.
Bellochio, contudo, descentraliza o aspecto familiar da história, apesar de sempre presente, para colocá-los sobre o peso das duas instituições que regem esse conflito, a Religião e a História. O longa se passa durante o período do Risorgimento (Ressurgimento, em italiano), quando o território do que hoje é conhecido como Itália se unificou, deixando de ser uma coleção de estados independentes. Um desses estados é o de Bolonha, onde Pio IX (Paolo Pierobon) é conhecido como o Papa Rei.
O Sequestro do Papa toma tempo em mostrar os desdobramentos do que veio a ser conhecido como “O Caso Mortara”, que, eventualmente, se torna um escândalo mundial. É intrigante observar o desenvolvimento de uma história que, inicialmente, começa tão íntima, com Edgardo (Enea Sala) brincando com seus irmãos, mostrando a dinâmica familiar dos Mortara, até que a ameaça bate à porta, com os agentes da Igreja prontos para tirar o jovem do seu lar.
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Bellochio não poupa críticas à Igreja Católica enquanto instituição, e transforma sua iconografia em algo sombrio e opressivo, especialmente a partir do olhar do próprio Edgardo, que encara tudo com uma expressão assustada, e vê a cruz como um símbolo estranho. Em suas cenas, há um cuidado em colocar a câmera em sua altura, fortalecendo a ideia de que a criança está sob o jugo de algo muito maior do que ele.
Não há preocupação em criar simpatia com os padres, figuras que, dentro do filme, no melhor dos casos são completamente subservientes ao poder do Papa e, nos piores, agentes ativos da doutrinação e antissemitismo perpretada pela Igreja. Durante o julgamento de um dos sacerdotes, ele alega simplesmente estar “cumprindo ordens”, argumento que ecoa ao longo da história por aqueles que cometeram diversas atrocidades. O Papa é uma figura delirante, sempre preocupada em estabelecer a superioridade da Igreja a qualquer custo, e se delicia em perceber o poder que tem diante dos outros.
Paralelamente, O Sequestro do Papa mostra as movimentações do Risorgimento, que abala o poder do Papa Rei. Contudo, o tempo histórico não se move na marcha que a família Mortara precisa. Na sequência mais dolorosa do filme, o pai de Edgardo, Salomone, (Fausto Russi Alesi) encara uma derrota judicial, somente para ouvir do advogado de defesa “Libertaremos o seu filho quando libertarmos Roma”, processo que levou anos para ser realizado. O que pode fazer um pai nessa situação se não gritar a plenos pulmões? Entre os desígnios de Deus e da História, uma família inteira se despedaça, em nome dos jogos de poder daqueles que tratam o mundo como seu.